O corpo e o feminino na obra Lucíola de José de Alencar
Yvisson Gomes*
RESUMO:
O presente artigo trata das relações da personagem de ficção Lucíola, de José de Alencar, com
o feminino e o corpo erótico. A análise da obra em questão perpassa pelos vieses da leitura
psicanalítica e literária do texto alencarino, contemplando a feminilidade em suas
características eróticas e de desejo.
PALAVRAS-CHAVE: Feminino. Corpo. Psicanálise. Literatura. Desejo.
* Psicólogo com pós-graduação na área de literatura brasileira e língua portuguesa e aperfeiçoamento em
psicopatologia geral. Estudante de psicanálise desde o ano de 2001. Atualmente é psicólogo do CRAS/AL.
Endereço: Rua Doutor Passos de Miranda, n° 44, Bebedouro. CEP: 570180-035. Maceió - AL. (82) 99425480.
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I – CONSIDERAÇÕES SOBRE O ROMANCE DE ALENCAR: A MULHER E SEU
ESPAÇO SOCIAL
O Rio de Janeiro do século XIX, período em se passam os acontecimentos do
romance Lucíola, guarda costumes e usos consequentes do modo idiossincrásico europeu. A
mulher busca como forma de se fazer vista os atributos de penteados à moda francesa, objetos
de encanto como espelhos, frascos, escova de roupa e caixas de diversos tamanhos e
finalidades à sua penteadeira – um verdadeiro requinte de nobreza. Essa mulher lê o famoso
jornal parisiense Le journal des modes; frequenta os bailes da alta sociedade com a elegância
de seus trajes esvoaçantes, muitas vezes pintados e documentados por artistas como James
Tissot, em seu famoso quadro intitulado, Cedo Demais, mostrando senhoras com seus finos
indumentos em um baile digno de presunções nobiliárquicas.
Nesse ambiente, encontra-se Lúcia que trafega numa sociedade que a imagina
feita tecido de gaze, brilhosa e fluida, como deveria ser uma dama, em contrapartida, há um
outro aspecto: o venal, o impulsivo e o erótico de cortesã luxuriosa. O hábito de freqüentar
teatros e assistir a óperas, utilizando-se de binóculos esculpidos a ouro, à lembrança da
imperatriz Teresa Cristina, faz do texto de José de Alencar o escrito do documento social
inerente ao glamour do Segundo Império em terras brasileiras. No romance encontramos o
seguinte fragmento: “Esperando que se levantasse o pano, corríamos ambos com o binóculo
as ordens de camarotes, que se começavam a encher” (ALENCAR, l993, p. 78).
Algumas passagens da obra citam ruas que se tornaram famosas no contexto da
elite abastada. Lê-se: “Às três horas da tarde passando pela Rua do Ouvidor vi Lúcia” (Ibid.,
p. 69). A Rua do Ouvidor é a rua das lojas finas, dos cafés, das confeitarias. Ali, estabelecemse
as modistas e costureiras francesas depois da chegada da corte de D. João VI, em l808. O
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célebre bairro da Glória que abrigava a Igreja de mesmo nome e que é o primeiro encontro
oficial da protagonista com Paulo Silva, é assim descrito pelo narrador:
Poucos dias depois da minha chegada, um amigo e companheiro de infância, o Dr. Sá, levoume
à festa da Glória; uma das poucas festas populares da corte. Conforme o costume, a grande
romaria, desfilando pela Rua da Lapa e a o longo do cais, serpejava nas faldas do outeiro e
apinhava-se em torno da poética ermida, cujo âmbito regurgitava com a multidão do povo [...] é
uma festa filosófica essa Festa da Glória (Ibid., p. l9).
Mediante tais apontamentos pode-se pensar na escrita de ficção do romancista
Alencar como a de uma “letra de estilo”, que descreve traços sociais e culturais de uma
época, caracterizando o olhar frente aos aspectos urbanistas de uma sociedade em plena
ascensão de costumes, claramente burgueses. Não à toa, o crítico Antonio Candido (l975, p.
86) ressalta:
Como quase em todo romancista de certa envergadura, há em Alencar um sociólogo implícito.
Na maioria dos seus livros, o movimento narrativo ganha força graças aos problemas de
desnivelamento nas posições sociais, que vão afetar a própria afetividade dos personagens [...] A
sua arte literária é, portanto, mais consciente e bem armada do que suporíamos à primeira vista.
Parecendo em escritor de conjuntos, de largos traços atirados com certa desordem; a leitura mais
discriminada de sua obra revela, pelo contrário, que a desenvoltura aparente reconhece um
trabalho esclarecido dos detalhes, e a sua inspiração, longe de confirmar-se soberana, é
contrabalançada por uma boa reflexão crítica.
A análise do romance em questão reflete a argúcia do escritor em trabalhar os
aspectos da mulher, na ficção, com o traço fundante de sua descrição social e histórica; uma
possibilidade de ver no texto a presença diacrônica, sempre associada à fala dinâmica, que se
produz dentro de “determinado espaço de tempo, no âmbito das sucessividades, análoga a
uma visão linear da história dos acontecimentos.” (LONGO, 2006, p. 31). Isso vem
demonstrar um alter-ego ficcional que personifica a leitura através do sentido de uma “Outra
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cena”, a do discurso que se passa no inconsciente, a ausência da fala presente entre dois
interlocutores (o psicológico e o social), pois “Essa moça não é feliz” (ALENCAR, 1993, p.
22) diz o narrador; não obstante, a sua casa tem uma “sala decorada e mobiliada com
elegância.” (Ibid., p. 23).
Em meados do século XIX nasce a obra Lucíola. É o quinto romance do
escritor e o primeiro de uma trilogia em que ele denominou de “perfis de mulheres”, a saber,
Lucíola (l862), Diva (l864) e Senhora (l875). A história é narrada de forma homodiegética
(escrito em primeira pessoa), tendo como narrador o bacharel pernambucano, recém-chegado
à corte carioca, Paulo Silva. Um personagem que vê sua amada, semelhantemente a
Margarida, da obra A Dama das Camélias (1848). Entretanto, ele faz questão de lembrar uma
possível dúvida frente à identidade e o desejo de Lúcia alinhavado com a personagem do
francês Alexandre Dumas. Pode-se ler:
Era um livro muito conhecido – A Dama das Camélias. Ergui os olhos para Lúcia interrogando
a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se, não por hábito e distração, mas por influência de uma
simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudas
de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor? Sonharia com as
afeições puras do coração? (Ibid., p. 81, grifo nosso).
Numa tentativa de esclarecer a relativa homogeneidade entre as duas obras, a
francesa e a brasileira, Massaud Moisés delimita as aparências e coincidências com as
possíveis divergências, fazendo do romance de Alencar uma obra autônoma, com uma
personagem autônoma e dessemelhante da de Dumas Filho. Assim diz Moisés (l985, p. 92):
Lucíola, história duma espécie de Margarida Gautier fluminense focalizada em pleno delírio de
bacante, constitui honrosa exceção. Faltam-se os delíquios teatrais da francesa, a languidez de
agonizante a inspirar paixão, o trágico destino de meretriz irrecuperável ainda que plena de
virtudes latentes: Lúcia, ao contrário, entrega-se conscientemente à “profissão”, e dela não pode
escapar, a despeito dos sentimentos de Paulo Silva, um Armando Duval à sua maneira.
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Paulo Silva, no romance, narra sua paixão por Lúcia, uma cortesã, a história de
amor acontecida há seis meses entre ele e sua amada, através de cartas dirigidas à senhora
G.M. (alguns críticos dizem ser essa senhora o próprio Alencar). Essa mulher, confidente de
Paulo Silva, nomeia os manuscritos reunidos pelo autor e lhes dá um título, característico de
um inseto. “Lucíola é o lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à
beira dos charcos. Não será a imagem verdadeira da mulher que no abismo da perdição
conserva a pureza d’alma? (ALENCAR, 1993, p. l7). Entretanto, a correspondente previne
que os moralistas poderão se enraivecer com o enredo romântico, sendo necessário que se
veja em Lúcia “estátuas e quadros de mitologia, a que não falta nem o véu da graça, nem a
folha de figueira, símbolos do pudor no Olimpo e no Paraíso Terrestre” (Ibid., p. 17).
A esse encontro apaixonado com Lúcia, Paulo Silva vem descobrir mais tarde
que verdadeiramente ela se chamava Maria da Glória. Uma tragédia acomete sua família
devido à febre amarela, dizimando-a. Assim fala a jovem cortesã: “– Lembra-se da febre
amarela em l850? [...] Foi um ano terrível! Meu pai, minha mãe, meus manos, todos caíram
doentes” (Ibid., p. l05). Desde então, ela muda de nome e assume uma nova identidade e
profissão. Ganha privilégios, detêm em seu poder inúmeros homens ricos e belos da corte
fluminense, possuindo quantias em dinheiro que lhe concede um bom sustento. Acaba se
enamorando pelo recifense que a faz mudar de vida e a torna uma mulher “de alma pura”.
Alguns personagens são notados. O amigo inseparável de Paulo, o Dr. Sá; e outros: Jesuína,
Jacinto e o Sr. Couto.
Segundo Dante Moreira Leite (l987, p. l52-l53) esse esquema aparentemente
simples do romance em estudo apresenta várias situações reveladoras, sendo uma delas a idéia
da prostituição, muito comentada pelos românticos, mas que em Lucíola caracteriza algo a
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mais, delimitado através dos nomes da personagem, Lúcia e Maria da Glória,
respectivamente, como o corpo e a alma, dicotomizados. Ei-lo:
No entanto, a consciência que tem da ‘personagem’ condenável mostra que a heroína não se
dividira inteiramente, ou, pelo menos, não se dividira a ponto de esquecer completamente os
sentimentos que não aceitava [...] a separação, efetivamente existe e chega a exigir a identificação
através de dois nomes [...] que se dá entre o corpo e a alma.
Pode-se corroborar com o trecho acima mediante a própria declaração de Paulo
ao encontro no camarote do teatro com Lúcia, no qual ele a despe numa manobra que a faz ser
uma mistura de beleza angelical (alma) com uma essência sensual (corpo), vivida por ele na
véspera desse acidental encontro. Assim está escrito:
A expressão angélica de sua fisionomia naquele instante, a atitude modesta e quase tímida, e a
singeleza das vestes níveas e transparentes, davam-lhe frescor e viço de infância, que devia influir
pensamentos calmas, senão puros. Entretanto o meu olhar ávido e acerado rasgava os véus ligeiros
e desnudava as formas deliciosas que ainda sentia latejar sob meus lábios (ALENCAR, 1993, p.
32)
Pensa-se na ambigüidade que os papéis sociais inspiram à personagem do
romance. A mulher com traços de musa cristã e, por sua vez, condenável a todo desejo que
inflama ao amante, pode ser vista como um anjo escamoteando um demônio, ou o seu
contrário. A moral, regida no aspecto contemporâneo da obra, reclama do ser feminino um
pudor que delimitava papéis bem ordenados de modos de comportamentos, no qual “a relação
[...] entre o homem e a mulher caracteriza-se pelo puritanismo e a moral dúplice” (BERG,
l970, p. l63). Nem toda mulher é permitida expor sua sexualidade sem que seja no recôndito
da alcova com seu cônjuge, e jamais, em espaços públicos. Essa última atitude fica a cargo
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dos seres lancinantes, das meretrizes, cuja heroína de Alencar fazia-se a dama dos prazeres
venais.
Fica-se, por ora, com a afirmação de Maria Rita Kehl (l998, p. 58) consoante as
obrigações de mulher na sociedade oitocentista e ao destino de sua feminilidade:
A cultura [...] dos séculos XVIII e XIX produziu uma quantidade inédita de discursos cujo
sentido geral era promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o conjunto de atributos,
funções, predicados e restrições denominado feminilidade [...] A feminilidade aparece aqui como
conjunto de atributos próprios a todas as mulheres, em função das particularidades de seus corpos
e de sua capacidade procriadora; partindo daí, atribui-se às mulheres um pendor definitivo para
ocupar um único lugar social – a família e o espaço doméstico –, a partir do qual se traça um único
destino para todas: a maternidade.
II – MÁSCARAS SÍGNICAS DE UM CORPO FEMININO1: LÚCIA E AMOR/TE
Mascarar-se2 pode vir a significar um artifício utilizado para esconder,
obnubilar, deixar-se não ser visto por um Outro3 e, por sua vez, pelo próprio corpo. Dessa
expressão cunha-se a palavra de origem grega, porém, com um tronco lingüístico latino,
persona. Do vocábulo que remete à tragédia grega, das peças encenadas dos anfiteatros de
Atenas e Pompéia, encontramos a origem da palavra personagem e, também, personalidade. E
o que se pode apreender dessa terminologia ligada à mulher ficcional, Lucíola?
1 Cabe definir aqui as colocações de feminilidade e feminino, entendendo que este último pode transitar também
no espaço do masculino e aquela seria regra fundamental ao destino da mulher, pois “pode-se pensar que [...] os
lugares do masculino e do feminino estariam ao menos situados no mesmo plano. Ambos estariam numa vertente
fálica fetichista [...]. No que concerne à rede de possibilidades identificatórias e sublimatórias femininas, a
ausência de significante da feminilidade virá marcar de maneira contundente os destinos do feminino” (NERI,
2005, p. 203). Ao falarmos em feminino e feminilidade sempre estaremos nos remetendo a uma visão
polissêmica das nomenclaturas, na qual a psicanálise nos faz sempre conjecturar.
2 Esse significado que é também de uso especifico da psicanálise será posteriormente comentado. O que se faz
nesse instante é dar um escopo inicial sobre o mascarar-se ou mascaramento em caráter geral.
3 O significado da palavra Outro (em maiúscula) diz do “Lugar onde a psicanálise situa, além do conceito
imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito, não obstante o determina.” (CHEMAMA, 1995, p. 156).
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Segundo o dicionário Larousse (l992, p. 860), personagem traduz-se como
“figura dramática [...] intérprete, protagonista”. Indo um pouco mais além, utilizam-se as
definições propostas por Moisés (1974, p. 398) tendo um percurso advindo da palavra
personnage, do francês, a leitura proposta por Aristóteles com a personagem que trama,
através da tragédia uma imitação (minesis) de deuses e seres telúricos. No sentido mais
próximo ao proposto, observam-se os símbolos do personagem no enredo de uma obra
literária, a saber, personagens com profundidade psicológica e com complexidade que separa
o humano do mito, o natural do transcendental, ou o seu contrário.
Ao toque de Paulo Silva nos lábios de Lúcia, a máscara (entendendo-a,
inicialmente, como face, corpo, vestido) da jovem se mostra costurada de vestígios de dor e
languidez, protagonizando-se um momento de extrema apreensão:
Quando porém os meus lábios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as formas
encantadoras que debuxavam a seda, pareceu-me que o sangue lhe refluía ao coração. As
palpitações eram bruscas e precípites. Estava lívida e mais branca do que o alvo colarinho do seu
roupão. Duas lágrimas em fio, duas longas e sentidas, como dizem que chora a corça expirando,
pareciam cristalizadas sobre a face, de tão lentas que rolavam. (ALENCAR, 1993, p. 28).
No trecho acima, observa-se as formas de esconder e mostrar as marcas do
corpo, como o signo de fissuras e rachaduras que desmembram o ser da paixão ao ser de dor.
Lúcia cria em seu corpo o erotismo de um ideário paradoxal: o amor e a morte em encontro
mimetizado por um Outro que a faz existir numa expressão de personagem mascarada,
ancorada no precipício da angústia. Observando que “o corpo é o lugar de travessia na
aventura humana e que, sendo passagem, pode significar, concomitantemente, prisão e
libertação, como o corpo sendo o médium da finitude: a morte, a própria finitude.” (TIBURI,
2004, p. 128).
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O que ocorre após esse encontro fortuito de Paulo com sua amada representa o
erotismo, mais uma vez paradoxal ao primeiro. No instante em que o narrador vê sua heroína,
a cortesã selvagem, ele se depara com outra mulher, um espectro, um fantasme de desejo
fundido entre o gozo que beira a loucura, e o abismo de um corpo como uma metáfora em
alegoria, percebendo esta última palavra como “um tropo do pensamento, uma amplificação
da metáfora ou uma sucessão de metáforas [...], constituindo na substituição, mediante uma
relação de semelhança, do pensamento em causa por outro em um nível mais profundo de
significado” (ROSA E SILVA, 2004, p. 131). Alencar projeta em sua personagem a típica
musa romântica, com “doce claridade de lua” que se transforma em “toques ardentes”, fogo e
fulgor. Essa metamorfose é recurso típico do estilo do Romantismo, sendo caracterizado por
nuances de imbricado sabor erótico:
Era outra mulher:
O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transforma
completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios
finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade
nas asas transparentes das narinas que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e
também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra [...] Às vezes um tremor espasmódico
percorria-lhe todo o corpo, e as espáduas se aconchegavam como se um frio de gelo a invadira de
súbito (ALENCAR, 1993, p. 29)
Existe algo de pessoal e intrínseco no corpo de Lúcia. Na etimologia temos a
palavra latina corpore que, ao mesmo instante que significa corpo erótico, vem a significar
também a palavra cadáver. Num corpo que se sustenta nos braços de um amado, a mulher
desfaz os nós de sua individualidade, concedendo um signo de amor e morte aos desejos
daquele que a ama, pois “o Outro concatena o desejo com as máscaras que o corpo feminino
se enfeita, artefato do próprio erotismo e efígie do eu (corpo), que na verdade é um outro
(corpo).” (GOMES, 2008, p. 50). Lucíola, nos dois instantes dos textos citados, ora agoniza
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corporalmente, ora se mostra inflamada com o Eros que possui. O feminino traduz-se por este
viés ambíguo, endereçado a um Outro no sintoma corpóreo que é um signo pois:
O corpo fica marcado pela estranheza do sintoma. A mulher é assim esse sintoma do homem,
esse corpo que se iguala ao objeto vazio de seu gozo, obediente, antes mesmo de haver
compreendido sua ordem, à injunção do Outro impessoal que está para além de si. Esse corpo é
então inteiramente signo, símbolo da extrema ignorância e um corpo que se confunde
(POMMIER, l987, p. 85, grifo nosso).
O laço que une um homem a uma mulher, pode e deve ser o encaixe do amor. A
protagonista/agonista alencarina, sofre de tanto amar. Mesmo sabendo que uma vida
“dissoluta”, de devassidão, produz no íntimo da jovem a necessidade de mudança de vértice,
de atitude e, na proximidade com o objeto desejado, ela abjura seu prazer para se tornar uma
mulher de sentimentos castiços, entregue unicamente a um só amado, mesmo assim, ela se
encontra numa lógica não-toda do feminino (LACAN, 1973, p. 26). Mais isso não se dá
facilmente. No Mal-estar na civilização Freud afirma que o momento de maior fragilidade do
ser humano é quando ele ama (1930, p. 75). Porém, Lúcia se travesti de outros adereços,
tentando burlar o amor que se avizinha (ou quem sabe apenas escondê-lo, pois ele já estava
lá), promovendo uma dança mítica, de tessitura anímica de sedução. Numa cena do texto, a
personagem inebriada com o vinho expõe sua sensualidade, próxima das bacantes dionisíacas,
numa irrupção de frenesi e delírio. Lê-se:
Lúcia saltava sobre a mesa. Arrancando uma palma em um dos jarros de flores, trançou-as no
cabelo, coroando-se de verbena, com as virgens gregas. Depois, agitando as longas tranças negras,
que se enroscaram quais serpes vivas, retraiu os rins num requebro sensual, arqueou os braços e
começou a imitar uma a uma as lascivas pinturas mas a imitar com a posição, com o gesto, com a
sensação do gozo voluptuoso que lhe estremecia o corpo, com a voz que expirava no flébil suspiro
e no beijo soluçante, com a palavra trêmula que borbulhava dos lábios no delíquio do êxtase
amoroso (ALENCAR, 1993, p. 46).
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Uma das formas que o feminino utiliza para se fazer existir na cadeia dos
significantes, e na suposta tentativa do não-todo na situação fálica, diz respeito aos seus
atributos na “mascarada”, pois “é pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo
tempo amada. Mas ela encontra o significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem
sua demanda de amor é endereçada” (LACAN, l998, p. 701).
Será necessário pontuar que o corpo na interpretação psicanalítica passa pelo
trajeto da pulsão de vida (Lebenstrieb) e de morte (Todestrieb). Na Psicanálise ocorre uma
observação epistemológica de conceito de energia sexual ou libidinal. As pulsões podem ser
parciais, no tocante a partes da “vestimenta corpórea”, a saber, boca, ânus, a voz e o olhar,
partes sustentadas por uma fantasia que estrutura e delimita o imaginário humano. Lúcia após
uma intensa discussão com Paulo socorre-se através de partes do corpo para se fazer vista
frente a seu desejo. “Às vezes o rosto se tornava sombrio e torvo para esclarecer-se de
repente com um raio de indignação, que cintilava na pupila; outras, a palavra sentida e
apaixonada estacava no meio da vibração, afogando num sorriso de desprezo” (ALENCAR,
1993, p. 82, grifo nosso).
Mas chega o momento em que o corpo de heroína convalesce. Sob os cuidados
de sua enfermeira, a senhora Jesuína, “mulher de cinqüenta anos, seca e já encarquilhada”
(Ibid., p. 87), a jovem demonstra a fragilidade de sua alma e do seu amor ao “consorte
amado”, o bacharel. Já não era a mesma. Ela diz: “Não és meu senhor, meu artista, meu pai e
meu criador?” (Ibid., p. 114). No instante de se mostrar criatura do desejo de um Outro, ela
também se revela uma mulher virgem, com uma outra virgindade, “a virgindade do coração”
(Ibid., p. 112) e pede perdão a Paulo. A sua vida está em lacunas, o seu texto enigmático
reclama ruptura de uma mulher antes lasciva e agora casta, pois: “Se o enigma do texto está
ligado a uma ruptura, a um recalcamento originário, a uma castração, à proibição do contato,
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pode-se afirmar que ele remete ao enigma por excelência, que é a feminilidade” (KOFMAN
apud BRANDÃO, l996, p. 21).
O que acontece com o desfecho do romance é de intensas revelações. O
semblante de luz e graça da mulher sensual e erótica é desmembrado em formas nas quais,
simplesmente, o corpo pode ser receptáculo do desejo que a consome. “Já não se chama mais
Lúcia e sim Maria da Glória, nascida no dia 15 de agosto, dia consagrado a Maria, que era
virgem, sublime e pura” (ALENCAR, 1993, p. 104). Como saída a esta revelação, ela
antecipa em momentos anteriores que se tivesse um filho, “Eu o mataria, eu, depois de tê-lo
concebido” (Ibid., p. 98). Sua alma não prodigaliza um rebento, porque está impura e
entranhada no manto da prostituição. Paulo era como um pai, criador e, como tal, a ordem do
incesto deveria ser barrada, pois “a construção de uma narrativa singular fica impossibilitada
na mulher, ao colocar-se na dependência do desejo dos homens – e por mais que saiba
manobrá-los – instala-se numa posição equivalente à da castração infantil, onde quem sabe do
desejo é sempre um outro.” (KEHL, l998, p. 324).
Não se pode deixar de esclarecer que o arranjo do corpo de Lúcia está
enraizado num contexto igualmente social no qual se metaforseiam os elementos que estão
implícitos na posição do dualismo psicofísico de Descartes, a saber, do corpo e da alma,
individualizados. É intrínseco que esse corpo escandido seja uma representação clara do
elemento da sociedade oitocentista, e por que não dizer, muitas vezes presente na
contemporaneidade. Cita-se José Carlos Rodrigues (l983, p. 62, grifo nosso):
Que o corpo porta em si a marca da vida social, expressa-o a preocupação de toda sociedade
em fazer imprimir nele, fisicamente, determinadas transformações que escolhe de um repertorio
cujos limites virtuais não se podem definir. Se considerarmos todas as modelações que sofre,
constataremos que o corpo é pouco mais que uma massa de modelagem à qual a sociedade
imprime formas segundo suas próprias disposições; formas nas quais a sociedade projeta a
fisionomia do seu próprio espírito.
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Freud, em seu artigo Contribuições à psicologia do Amor (1925, p. l51)
enfatiza que “no amor o valor da mulher é aferido por sua integridade sexual, e é reduzido em
vista de qualquer aproximação com a característica de ser semelhante à prostituta”4. Encontrase
a imagem de Lúcia nesse paradigma imposto, próprio da sociedade da época do romance.
O caminho da maternidade já fora descartado pela protagonista, e sua única solução é uma
possível troca de papéis, uma inversão de si mesma. A cortesã apresenta a Paulo Silva sua
irmã caçula, sobrevivente da febre amarela e, propõe, um casamento feliz com Ana. Um jogo
que beira a loucura, o desespero, é assim descrito:
– Quero uni-la [Ana] ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os
filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na
pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor. Ela será tua esposa; eu
completarei todas as outras afeições de que careces, serei tua irmã, tua filha, tua mãe!
(ALENCAR, 1993, p. ll6).
Essa saída desvela “a obscuridade indizível do feminino, o que transformaria,
enfim, o ser da mulher em enigma” (BIRMAN, 2001, p. l81). Pode-se conjecturar que essa
artimanha do desejo da protagonista coloca-se frente a uma entrega edipiana, por saber que
mesmo tendo-a ofertada sua irmã ao consócio do matrimônio, ela mesma assim se coloca
frente a uma relação incestuosa e ratifica a mesma em suas vicissitudes. Um traço de um
pequeno gozo que sobra na cadeia de significantes, caracterizando-se como uma tentativa de
“desarfirmar” o destino lógico da feminilidade que seria transitado pela via da maternidade,
deslocado nesse ínterim a uma extensão de si mesma (a irmã) como possibilidade de egresso,
assimetricamente ao incesto. Essa assimetria corroboraria com a inclusão de uma terceira
4 O inconsciente, para a psicanálise, é demarcado pela alogicidade e atemporalidade. Quando se faz uso de
termos como mulher castiça e prostituta, não se refere somente há um tempo cronológico em que esses termos
têm maior significação, mas a trama que rege o imaginário inconsciente do homem e da mulher através da
linguagem que estrutura esse mesmo inconsciente em sua totalidade sígnica.
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pessoa na relação e, paradoxalmente, promoveria um incesto “subliminar”. Ou seja, haveria a
continuidade da relação não passada pela interdição: “serei tua irmã, tua filha, tua mãe!”
(ALENCAR, 1993), no qual se depreende que não havendo esse corte as pulsões sexuais, que
são forças que transitam pelo corpo e desembocam no aparelho mental, continuariam sem
limites, um reclame a feminilidade em “rupturas, infinitas rupturas” (RABANT-LACÔTE,
l985, p. 92).
III – EPÍLOGO: A (IM)POSSIBILIDADE DO AMOR
Lúcia, Lucíola ou simplesmente Maria da Glória adoece. Seu corpo já não é
mais o mesmo. Ela afirma a Paulo que ele a purificou, “tu me purificaste ungindo-me com os
teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o
consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no Céu!” (ALENCAR,
1993, p. ll9, grifo nosso).
Segundo Octavio Paz (l994, p. l9l): “o amor começa com um olhar; olhamos a
pessoa que queremos e ela nos olha.” A heroína de Alencar, narrada sob as vestes de uma
sociedade puritana, confirma a fidelidade a um amor que se torna falta, através de um olhar. O
olhar de quem ama e é amado. A morte da protagonista representa o imaterial, a possibilidade
de despir-se da indumentária de anjo decaído, o Lúcifer, e apenas ser um anjo. Nota-se que a
palavra anjo vem do grego aggelos e do latim angelus que significa “criança vestida de anjo
nas procissões; criança morta” (LAROUSSE, l992, p. 62). É interessante ressaltar que Lúcia
fora vista pela primeira vez na festa da Glória por Paulo Silva, numa procissão, e que seu fim
fora de uma alma infantil fatalmente vivida pelo expirar último. A criança morta representa,
metaforicamente uma atual Maria da Glória entregue aos mais finos desejos e nobres
Psicanálise e Literatura: O corpo e o feminino na obra Lucíola de José de Alencar
Psicanálise & Barroco em revista v.7, n.1: 14-30, jul.2009 28
sentimentos de salvação, mostruário de um corpo que é profundo e tudo se diz nele (no
interdito).
No mais, fica-se com a assertiva do texto, no qual Paulo assim escreve à sua
leitora, a senhora G.M, lembrando-se das horas de felicidade, de gracejo com Lúcia:
Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de lágrimas. É porque, repassando
na memória essa melhor porção de minha vida, alheio-me tanto do presente que revivo hora por
hora aqueles dias de ventura, como de primeiro os vivi, ignorando o futuro, e entregue todo às
emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava, Lúcia estava ao meu lado; inda eu era feliz da
minha lembrada felicidade (ALENCAR, 1993, p. ll9).
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The female body and the work Lucíola by José de Alencar
Psicanálise e Literatura: O corpo e o feminino na obra Lucíola de José de Alencar
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