Continuando o estudo sobre o mito de Fausto, o homem que vendeu sua alma ao demônio, passamos a expor um dos sentidos possíveis da peça de Goethe. O protagonista representa o ideal romântico do homem que, insatisfeito com a sua condição de mortal, recorre a qualquer meio para realizar seu sonho de atingir a felicidade. Só que o processo se desenvolve pelo modo irônico: chegar a Deus pela ajuda do Demônio; ser feliz renunciando à própria alma; conquistar um amor angelical mediante trapaças diabólicas. A renúncia à alma imortal em troca de bens materiais só poderia resultar numa degradação. Daí a conseqüência trágica da loucura de Margarida, vítima de sua paixão inocente.
Talvez a beleza desta peça de Goethe esteja mesmo na representação do mundo de uma forma dialética: de um lado, a tese do amor puro, angelical, personificado em Margarida; de outro lado, a antítese do mundo sinistro, diabólico, de Mefistófeles, símbolo da sedução e do encanto dos desejos carnais; atraído pelas duas visões de vida contrárias, está no meio, como síntese, o personagem Fausto, amante de Margarida e amigo de Mefistófeles, símbolo da alma romântica constantemente balançando entre o ideal do sonho e o grotesco da vida real.
A insatisfação do homem com a sua condição de ser contingente, nascido para a morte e para a dor, tendo aspirações infinitas e realizações efêmeras, já criara mitos belíssimos na cultura hebraica e pagã. Vejam-se, por exemplo, os mitos bíblicos de Adão, que comeu o fruto proibido, e de Caim, que pecou contra Deus matando seu irmão; ou os mitos gregos de Prometeu que roubou o fogo divino e de Ícaro que queria alcançar o Céu voando com asas de cera. Trata-se de idealizações da revolta do homem contra as leis do universo, na tentativa de se igualar à divindade, como fizeram os mitológicos Titãs, que lutaram contra o todo-poderoso Júpiter. Na cultura moderna, o personagem histórico-mítico de Fausto surge na época do Barroco, quando a alma européia acusa o conflito entre o gozo dos prazeres da vida, herança do Renascimento, e a ameaça de penas infernais sancionadas pelo Tribunal da Inquisição da Contra-Reforma católica.
As sucessivas gerações românticas, especialmente nos países anglo-saxões, idealizam a figura de Fausto, fazendo dele o arquétipo do “jovem colérico”, revoltado contra a hipocrisia da vida burguesa, procurando refúgio na bebida, na arte, no amor, na morte. O lado positivo do “homem faustiano” é a figura ideal da humanidade moderna, que sonha com a liberdade e o progresso, libertando-se de qualquer tipo de preconceito. Do protótipo do homem faustiano ao modelo do homem nietzschiano o passo é breve. Outro alemão, o filósofo F. Nietzsche (1844-1900), negando qualquer forma de transcendência divina, exalta o poder da vontade humana contra o determinismo biopsíquico e religioso.
Mas o mito de Fausto, além de qualquer especulação de ordem filosófica ou religiosa, sobrevive na nossa realidade cotidiana, revelando uma postura ética recorrente. A lenda do homem que vende sua alma ao diabo é uma denúncia de todas as formas de desonestidade. No “dando que se recebe” se realiza uma troca entre dois valores: o imediato e individual que esmaga o futuro e social. Vende sua alma ao diabo o político que se enriquece com o dinheiro público, que deveria ser destinado a escolas e postos de saúde; o banqueiro que, com sua pratica de agiotagem, se alimenta das lágrimas do endividado; o homem que não assume a paternidade; a mulher que não dá assistência a seus filhos e etc.
Salvatore D'Onofrio
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