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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Lado a lado, bem bolado

Ricardinho andava sem sorte. Acho até que, se ele fosse jogar cara-ou-coroa ou par-ou-ímpar dez vezes seguidas, ele perderia todas elas.
O caso é que ele tinha aprendido que "em cima" se escreve separado e "embaixo" se escreve junto. Mas, na hora de escrever suas redações, ele seeeeempre se confundia e acabava fazendo tudo ao contrário.
Foi queixar-se pra vovó. Afinal, a Vovó tinha sido professora a vida inteira e sabia tudo, tudinho mesmo de todas as coisas.
- É fácil, Ricardinho - ensinou a Vovó. - Levante a mão esquerda, bem aberta.
- Assim?
- Não. Essa é a direita.
- Então é essa?
- É claro, você só tem duas, não é? A mão esquerda é a que fica do lado do coração.
- E de que lado fica o coração?
- Do lado dessa pintinha que você tem no rosto.
- Ah, ficou fácil! Mas o que tem a ver mão esquerda levantada com "em cima" e "embaixo"?
- Veja, querido: seus dedos, "em cima", estão separados e, "embaixo", eles estão juntos, grudados na palma, não estão?
Quando você ficar em dúvida, é só levantar a mão aberta, que você nunca mais vai errar! "Em cima" é sempre separado e "embaixo" é sempre junto!
Ricardinho achou genial a ideia da Vovó. No dia seguinte, na escola tratou logo de contar o novo truque para o Adriano, seu melhor amigo na primeira série.
- Tá vendo, Adriano? É só levantar a mão esquerda e...
- Não vai dar certo - respondeu o amigo.
- Por que não?
- Porque se eu levantar a mão esquerda, como é que eu vou escrever? Eu sou canhoto!
- Bom, então levante a direita, que dá no mesmo.
- E como é que eu sei qual é a direita?
- É fácil. Eu, por exemplo, sei que a minha mão esquerda é esta, que está do lado da pintinha que eu tenho na cara.
- Mas eu não tenho pintinha nenhuma na cara - discordou o Adriano.
Ricardinho chegou a sugerir que o Adriano pintasse uma pinta na cara com a caneta, mas Adriano acabou achando mais fácil saber que a sua mão esquerda era aquela com que ele escrevia e desenhava e a direita era... bom, era a outra!

Pedro Bandeira

Vampi & O Presente Mágico

Vampi, a vampira chique e cheia de imaginação, morava numa casinha em cima de uma árvore. Um dia, ela ganhou de presente um carro conversível rosa-choque. Vampi montou, acelerou com força e buzinou forte - fon-fon!
O carro furou o ar e sumiu pelo mundo afora. Vampi viu um trem grande e comprido, viu ônibus pequenos e curtos. Viu prédios cinzentos, viu casas coloridas. Viu ruas com gente apressada e becos onde só tinha fantasma, uh...
Viu gente, bicho, planta.
Redondo, quadrado, oval e retangular.
Viu o céu, viu o mar, viu a montanha.
Azul e violeta, laranja e vermelho, verde em mil tons.
Viu nuvens brancas, apertou um botão e voou.
Os pássaros passavam pertinho e tudo era pequenininho, lá em baixo...
Vampi só ria, fazendo bi-bi, fon-fon e pedalando, pedindo passagem para as esttrelas, que eram maiores do que ela, vejam só!
De olho na volta procurou um lugar para aterrissar, mas ao ajeitar o cabelo, errou o alvo e caiu no mar.
Opa! Apertou outro botão, o carrinho-avião virou navio, flutuou, começou a afundar e já era um submarino, quase um peixe, nadando no meio das águas e dos corais...
Um peixe olhou para ela, dois peixes, três, quatro, cinco, mil, um cardume inteiro, quantos peixes são?
Nem deu tempo pra contar. Devagarinho, o submarino subiu, virou navio, flutuou, virou avião, passou e virou carrinho outra vez, parando ao pé da sua árvore.
Na mesma hora, nasceram seis patas no lugar das rodas, e ele virou uma aranha, que subiu pelo tronco até alcançar os altos galhos cheios de folhas...
Atravessando-os como se fosse um fantasma, levou Vampi de volta para casa.
"Puxa, meu carro é mágico!" - disse ela, encantada, saindo por cima, sem abrir a porta. Mas logo mudou de ideia: sentando-se outra vez no seu carrinho rosa-choque, Vampi riu, sonhando com a próxima aventura.

Regina Drummond

sábado, 12 de novembro de 2011

A Igreja do Diabo, de Machado de Assis

A IGREJA DO DIABO

Capítulo I
De uma idéia mirífica
Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a idéia de
fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado
com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones,
sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e
obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja
do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
— Vá, pois, uma igreja, concluiu ele. Escritura contra Escritura, breviário contra
breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas
e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a
minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se
dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero.
Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto
magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a idéia,
e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: —
Vamos, é tempo. E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias
do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

Capítulo II
Entre Deus e o Diabo
Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que
engrinaldavam o recém-chegado, detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada
com os olhos no Senhor.
— Que me queres tu? perguntou este.
— Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os
Faustos do século e dos séculos.
— Explica-te.
— Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse
bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam
com os mais divinos coros...
— Sabes o que ele fez? perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.
— Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito
que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar
uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha
desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e
completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de
dissimulação... Boa idéia, não vos parece?
— Vieste dizê-la, não legitimá-la, advertiu o Senhor.
— Tendes razão, acudiu o Diabo; mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos
mestres. Verdade é que neste caso seria o aplauso de um mestre vencido, e uma tal
exigência... Senhor, desço à terra; vou lançar a minha pedra fundamental.
— Vai.
— Quereis que venha anunciar-vos o remate da obra?
— Não é preciso; basta que me digas desde já por que motivo, cansado há tanto da
tua desorganização, só agora pensaste em fundar uma igreja.
O Diabo sorriu com certo ar de escárnio e triunfo. Tinha alguma idéia cruel no
espírito, algum reparo picante no alforje de memória, qualquer coisa que, nesse breve
instante de eternidade, o fazia crer superior ao próprio Deus. Mas recolheu o riso, e disse:
— Só agora concluí uma observação, começada desde alguns séculos, e é que as
virtudes, filhas do céu, são em grande número comparáveis a rainhas, cujo manto de veludo
rematasse em franjas de algodão. Ora, eu proponho-me a puxá-las por essa franja, e trazêlas
todas para minha igreja; atrás delas virão as de seda pura...
— Velho retórico! murmurou o Senhor.
— Olhai bem. Muitos corpos que ajoelham aos vossos pés, nos templos do mundo,
trazem as anquinhas da sala e da rua, os rostos tingem-se do mesmo pó, os lenços cheiram
aos mesmos cheiros, as pupilas centelham de curiosidade e devoção entre o livro santo e o
bigode do pecado. Vede o ardor, — a indiferença, ao menos, — com que esse cavalheiro
põe em letras públicas os benefícios que liberalmente espalha, — ou sejam roupas ou botas,
ou moedas, ou quaisquer dessas matérias necessárias à vida... Mas não quero parecer que
me detenho em coisas miúdas; não falo, por exemplo, da placidez com que este juiz de
irmandade, nas procissões, carrega piedosamente ao peito o vosso amor e uma comenda...
Vou a negócios mais altos...
Nisto os serafins agitaram as asas pesadas de fastio e sono. Miguel e Gabriel fitaram
no Senhor um olhar de súplica. Deus interrompeu o Diabo.
— Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie,
replicou-lhe o Senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do
mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto
gasto, melhor é que te cales e te retires. Olha; todas as minhas legiões mostram no rosto os
sinais vivos do tédio que lhes dás. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele
fez?
— Já vos disse que não.
— Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. Colhido em um naufrágio,
ia salvar-se numa tábua; mas viu um casal de noivos, na flor da vida, que se debatiam já
com a morte; deu-lhes a tábua de salvação e mergulhou na eternidade. Nenhum público: a
água e o céu por cima. Onde achas aí a franja de algodão?
— Senhor, eu sou, como sabeis, o espírito que nega.
— Negas esta morte?
— Nego tudo. A misantropia pode tomar aspecto de caridade; deixar a vida aos
outros, para um misantropo, é realmente aborrecê-los...
— Retórico e sutil! exclamou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja; chama todas as
virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens... Mas, vai! vai!
Debalde o Diabo tentou proferir alguma coisa mais. Deus impusera-lhe silêncio; os
serafins, a um sinal divino, encheram o céu com as harmonias de seus cânticos. O Diabo
sentiu, de repente, que se achava no ar; dobrou as asas, e, como um raio, caiu na terra.

Capítulo III
A boa nova aos homens
Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar a cogula
beneditina, como hábito de boa fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e
extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus
discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os deleites mais íntimos. Confessava
que era o Diabo; mas confessava-o para retificar a noção que os homens tinham dele e
desmentir as histórias que a seu respeito contavam as velhas beatas.
— Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos
soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza,
a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso.
Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro,
fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo...
Era assim que falava, a princípio, para excitar o entusiasmo, espertar os indiferentes,
congregar, em suma, as multidões ao pé de si. E elas vieram; e logo que vieram, o Diabo
passou a definir a doutrina. A doutrina era a que podia ser na boca de um espírito de
negação. Isso quanto à substância, porque, acerca da forma, era umas vezes sutil, outras
cínica e deslavada.
Clamava ele que as virtudes aceitas deviam ser substituídas por outras, que eram as
naturais e legítimas. A soberba, a luxúria, a preguiça foram reabilitadas, e assim também a
avareza, que declarou não ser mais do que a mãe da economia, com a diferença que a mãe
era robusta, e a filha uma esgalgada. A ira tinha a melhor defesa na existência de Homero;
sem o furor de Aquiles, não haveria a Ilíada: "Musa, canta a cólera de Aquiles, filho de
Peleu..." O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos
bons versos de Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de
Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal. Mas, ainda pondo de
lado essas razões de ordem literária ou histórica, para só mostrar o valor intrínseco daquela
virtude, quem negaria que era muito melhor sentir na boca e no ventre os bons manjares,
em grande cópia, do que os maus bocados, ou a saliva do jejum? Pela sua parte o Diabo
prometia substituir a vinha do Senhor, expressão metafórica, pela vinha do Diabo, locução
direta e verdadeira, pois não faltaria nunca aos seus com o fruto das mais belas cepas do
mundo. Quanto à inveja, pregou friamente que era a virtude principal, origem de
propriedades infinitas; virtude preciosa, que chegava a suprir todas as outras, e ao próprio
talento.
As turbas corriam atrás dele entusiasmadas. O Diabo incutia-lhes, a grandes golpes
de eloqüência, toda a nova ordem de coisas, trocando a noção delas, fazendo amar as
perversas e detestar as sãs.
Nada mais curioso, por exemplo, do que a definição que ele dava da fraude.
Chamava-lhe o braço esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos
homens são canhotos, eis tudo. Ora, ele não exigia que todos fossem canhotos; não era
exclusivista. Que uns fossem canhotos, outros destros; aceitava a todos, menos os que não
fossem nada. A demonstração, porém, mais rigorosa e profunda, foi a da venalidade. Um
casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade,
disse o Diabo, era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender
a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e
legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o
teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria
consciência, isto é, tu mesmo? Negá-lo é cair no absurdo e no contraditório. Pois não há
mulheres que vendem os cabelos? não pode um homem vender uma parte do seu sangue
para transfundi-lo a outro homem anêmico? e o sangue e os cabelos, partes físicas, terão um
privilégio que se nega ao caráter, à porção moral do homem? Demonstrado assim o
princípio, o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou
pecuniária; depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o
exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a venalidade e a
hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente.
E descia, e subia, examinava tudo, retificava tudo. Está claro que combateu o
perdão das injúrias e outras máximas de brandura e cordialidade. Não proibiu formalmente
a calúnia gratuita, mas induziu a exercê-la mediante retribuição, ou pecuniária, ou de outra
espécie; nos casos, porém, em que ela fosse uma expansão imperiosa da força imaginativa,
e nada mais, proibia receber nenhum salário, pois equivalia a fazer pagar a transpiração.
Todas as formas de respeito foram condenadas por ele, como elementos possíveis de um
certo decoro social e pessoal; salva, todavia, a única exceção do interesse. Mas essa mesma
exceção foi logo eliminada, pela consideração de que o interesse, convertendo o respeito
em simples adulação, era este o sentimento aplicado e não aquele.
Para rematar a obra, entendeu o Diabo que lhe cumpria cortar por toda a
solidariedade humana. Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova
instituição. Ele mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes
insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio ou
desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada, e citava
esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que escrevia a uma das
marquesas do antigo regime: "Leve a breca o próximo! Não há próximo!" A única hipótese
em que ele permitia amar ao próximo era quando se tratasse de amar as damas alheias,
porque essa espécie de amor tinha a particularidade de não ser outra coisa mais do que o
amor do indivíduo a si mesmo. E como alguns discípulos achassem que uma tal explicação,
por metafísica, escapava à compreensão das turbas, o Diabo recorreu a um apólogo: —
Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada acionista não
cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos adúlteros. Este apólogo
foi incluído no livro da sabedoria.

Capítulo IV
Franjas e franjas
A previsão do Diabo verificou-se. Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava
em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham
alistar-se na igreja nova. Atrás foram chegando as outras, e o tempo abençoou a instituição.
A igreja fundara-se; a doutrina propagava-se; não havia uma região do globo que não a
conhecesse, uma língua que não a traduzisse, uma raça que não a amasse. O Diabo alçou
brados de triunfo.
Um dia, porém, longos anos depois notou o Diabo que muitos dos seus fiéis, às
escondidas, praticavam as antigas virtudes. Não as praticavam todas, nem integralmente,
mas algumas, por partes, e, como digo, às ocultas. Certos glutões recolhiam-se a comer
frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos
avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário
restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o
coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam
embaçando os outros.
A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e
viu que lavrava muito. Alguns casos eram até incompreensíveis, como o de um droguista
do Levante, que envenenara longamente uma geração inteira, e, com o produto das drogas,
socorria os filhos das vítimas. No Cairo achou um perfeito ladrão de camelos, que tapava a
cara para ir às mesquitas. O Diabo deu com ele à entrada de uma, lançou-lhe em rosto o
procedimento; ele negou, dizendo que ia ali roubar o camelo de um drogomano; roubou-o,
com efeito, à vista do Diabo e foi dá-lo de presente a um muezim, que rezou por ele a Alá.
O manuscrito beneditino cita muitas outras descobertas extraordinárias, entre elas esta, que
desorientou completamente o Diabo. Um dos seus melhores apóstolos era um calabrês,
varão de cinqüenta anos, insigne falsificador de documentos, que possuía uma bela casa na
campanha romana, telas, estátuas, biblioteca, etc. Era a fraude em pessoa; chegava a meterse
na cama para não confessar que estava são. Pois esse homem, não só não furtava ao jogo,
como ainda dava gratificações aos criados. Tendo angariado a amizade de um cônego, ia
todas as semanas confessar-se com ele, numa capela solitária; e, conquanto não lhe
desvendasse nenhuma das suas ações secretas, benzia-se duas vezes, ao ajoelhar-se, e ao
levantar-se. O Diabo mal pôde crer tamanha aleivosia. Mas não havia que duvidar; o caso
era verdadeiro.
Não se deteve um instante. O pasmo não lhe deu tempo de refletir, comparar e
concluir do espetáculo presente alguma coisa análoga ao passado. Voou de novo ao céu,
trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa secreta de tão singular fenômeno. Deus
ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou,
sequer, daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe:
— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda,
como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição
humana.

Machado de Assis
Por Francisco Eriberto

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sob uma ótica diferente ( Minotauro )

Sob uma ótica diferente
( Minotauro )
       Acho que sou um dos poucos seres que se lembra de seu nascimento. Minha mãe, estirada sobre a cama, uma escrava me segurando e me mostrando para um homem. Senti, instintivamente, que aquele homem não era meu pai, apesar de ser o marido de minha mãe. O homem me olhou com fúria em seus olhos. Percebi, ali, no momento que vinha ao mundo, que teria uma vida difícil. 
       A verdade foi pior que meus pensamentos, desde cedo fui segregado, não ficava com as crianças do palácio, não ficava no colo de minha mãe, meus alimentos eram atirados de certa distância pelas escravas. Por algum motivo eu sempre estava vigiado por soldados muito bem armados. 
       Sei que já nasci diferente, meu desenvolvimento físico e mental foi rápido, senti que crescia mais intensamente do que qualquer outra criança do palácio. Via minha mãe raras vezes. Quanto ao homem que morava com ela acho que o vi uma ou duas vezes depois de nascido. Meu físico se desenvolvia rápido, mas não conseguia falar, pelas minhas cordas vocais saíam sons que ninguém entendia. Eu não conseguia me fazer entender. Minha cabeça também era anormal, muito grande, crescida. Por longo tempo nunca me vi no espelho, até que aconteceu. Numa das poucas vezes que me foi permitido sair de minha câmara cheguei até um pequeno lago, em um dos muitos espalhados pelo palácio. Com receio me aproximei e vi, pela primeira vez, meu reflexo na água. Eu era totalmente diferente das outras crianças que via no palácio. Era mais forte, mais alto, minhas mãos eram enormes assim como os pés, mas da cintura para baixo eu era muito peludo. Tinha mais pelos que os soldados que me vigiavam constantemente.
       Um dia, soldados chegaram à minha câmara e me aprisionaram com fortes correntes. Tentei protestar contra aquilo, mas de minha boca os sons que saíam não eram entendidos pelos homens que me levavam. Pelos sinuosos corredores do palácio fui sendo guiado até chegar a um salão. Ali estava, novamente, aquele homem que vivia com mamãe. Alto, forte, poderoso, ele falava com outro homem, mais idoso, uma face de sábio, segurando uma enorme chave, ao fundo, uma porta grande, alta e forte. Com certeza aquela chave abria aquela porta.
       O homem, acho que pela primeira e única vez em minha vida, veio ter comigo e me disse: “A  partir de agora vai viver dentro deste local. Não quero nunca mais ver sua horrenda face.” 
       Novamente me lamentei. Como os deuses poderiam ser tão cruéis comigo? O que tinha feito para merecer aquilo? Os soldados me empurraram pela porta, saindo em seguida, o ruído da porta se fechando me dando a certeza de que estava, para sempre, separado do mundo. 
       Fiquei dias ali na porta, chutando, chorando, berrando, amaldiçoando os deuses, mas nada adiantava. Nem comida me deram. Desesperado, pensando que iria morrer de inanição, me aventurei pelo emaranhado de túneis e corredores que compunham minha nova morada.
       Em pouco tempo perdi meu senso de orientação, estava irremediavelmente perdido dentro daquele lugar.      
       Estava a ponto de morrer de inanição quando algo aconteceu, vi um homem ali dentro. Ele estava tão perplexo e perdido como eu mesmo. Com certa alegria, por finalmente ter alguma companhia fui em sua direção. Vi quando me olhou assustado, saindo em desabalada carreira. Eu o segui, chamando por ele, meus gritos reverberavam pelos corredores sem fim daquele local. Enfim o alcancei, ele estava parado, olhos vítreos, minha presença o apavorava. A última coisa que lembro foi de seu olhar fixo em mim e suas últimas palavras: “Então é verdade, Poseidon criou essa monstruosidade.......” 
       Ele morreu em seguida, tinha caído e batido a cabeça em uma das muitas pedras daquele local. Fiquei atônito, estava novamente só. Com pesar, fiquei algumas horas velando aquele cadáver, e então tive um desmaio. A fome me minava as forças. Ao me recobrar, olhei o cadáver ali, deuses, não..., mas que outra alternativa eu teria?  Nunca, até então, comera carne. E, justo na primeira vez, comi carne humana. Tive de devorar um cadáver. Era isso ou morrer de inanição. 
       De tempos em tempos encontrei novos homens e mulheres. E era sempre a mesma coisa, ao me verem corriam apavorados, então eu encontrava seus cadáveres e  os devorava  para não morrer de fome. 
       Essa vida de angústia e sofrimento me perseguiu por muitos e muitos anos, então os deuses, como que compadecidos de minha sina, resolveram agir. Vi quando ele chegou, era diferente dos outros homens e mulheres. Trazia consigo uma lança e uma espada, em seus olhos uma firme determinação. Uma das mãos desenrolava algo, parecia um novelo. Este homem conseguiria voltar para a porta da minha prisão. Sinceramente fiquei alegre com a presença dele. Levantei-me de onde estava e fui em sua direção, saudando o estranho, apesar de ter aprendido há muito tempo que os homens não conseguiam entender minha língua. Quando estava bem próximo vi que o estranho pegou algo no chão, uma arma, uma lança, tal qual as que eu vira sendo usadas pelos soldados do palácio. O homem mirou a lança em mim, e com perfeita pontaria atravessou meu dorso com ela. Dei um grito de angústia e dor que reverberou por toda aquela construção. Deitado no chão, me contorcendo de dor, ainda vi Teseu erguer sua espada para o golpe final. Novamente meu dorso foi perfurado, sua espada encontrou meu coração e minha alma partiu para o Hades.  
       Só então soube de certas coisas. No Hades fiquei sabendo que eu era chamado de Minotauro. Era filho de Pasífae, mulher de Minos, com um touro branco enviado por Poseidon, deus dos mares para castigar Minos por sua petulância ante os deuses. Minha mãe foi amaldiçoada apaixonando-se pelo touro do deus dos mares. Da união profana de uma mulher com um touro eu nasci. Metade humano, metade touro, e por muito tempo considerado um monstro.
       Também soube que aqueles homens e mulheres que fui obrigado a comer não passavam de vítimas exigidas por Minos para não tomar e destruir a cidade de Atenas. O perverso usava as lendas e fábulas que teciam sobre mim, o monstruoso meio homem, meio touro, para subjugar a brava gente ateniense. O local em que vivia era chamado Labirinto, construção que ficava embaixo do palácio de Cnossos em Creta.
       O homem sábio que o construiu chamava-se Dédalo.
       Somente após a minha morte é que fiquei sabendo, enfim, que nunca poderia ter sido uma criança normal, por mais que minha alma ansiasse por isso.

Escrito por Abelardo Domene Pedroga

Inspiração

INSPIRAÇÃO
      O ploc da bola de chiclete cor de rosa foi bem próximo ao meu ouvido direito. Já tinha falado milhões de vezes para ela não fazer isso, ainda mais quando eu estava trabalhando.

    Leila fingiu que não percebeu que eu fingia ignorá-la, brincou com uns papéis soltos e depois se sentou com os pés em cima da minha mesa, e ainda por cima com aquelas botas. As escolhidas da vez eram da Doc Marten, meio palmo de salto e um couro tingido de roxo que me dava arrepios só de olhar.

    Novo ploc da bolha rosa. Se Mathias, meu editor, visse minha cara ia morrer de rir. Segundo ele, Leila era o jeito que eu tinha arranjado para me sentir jovem de novo.   O velho clichê do divorciado de meia idade que arranja uma namorada que parece sua filha. Ele achava a prática saudável e ficou feliz quando lhe contei sobre ela, mas não foi capaz de esconder o choque quando os apresentei. Não era culpa dele. Meia dúzia de piercings e um cabelo laranja fazem isso com qualquer um.

    Perguntei-me por que a trouxe comigo quando resolvi vir para esse fim de mundo terminar meu último romance. Sim, é muito bonita apesar de todo esse metal na cara, me faz rir também... Ah, seja sincero consigo mesmo Virgílio: você não queria dormir sozinho.

    — Está chato aqui. — ela resmunga enrolando uma mecha do cabelo laranja.

    Percebo que as unhas ontem azuis hoje estão verdes. Talvez Mathias tivesse razão, ela era jovem demais para mim. Talvez na volta pudesse mandá-la para sua casa, pela primeira vez me dou conta de que nem sabia se Leila morava com os pais ou não antes de chegar ao meu apartamento com uma mochila de lona preta três dias depois de nos conhecermos.

    Devia ter lhe dito: olhe querida, nos damos muito bem em muitos sentidos, mas essa coisa de morar juntos é um pouco demais. Pensei em dizer, mas perdia as palavras sempre que ela me encarava com aqueles olhos zombeteiros cheios de lápis preto. Às vezes me sentia um idiota.

    — Vamos sair? — não convidou, bufou irritada levantando da cadeira que rodopiou e ameaçou cair tamanha a brusquidão do movimento.

    — Você pode ir se quiser. — digo — Tenho que terminar este capítulo.

    A verdade é que, desde que ela me interrompeu com seu odioso chiclete cor de rosa, tinha parado de trabalhar. Abri outro documento, minhas anotações pessoais e comecei a escrever obsessivamente o que ia pensando, isto é, Leila. Como me livrar de Leila.

    — E eu vou fazer o quê sozinha? — ela torna — Essa cidade é o c... do mundo.

    — Deveria ter ficado em casa. — falo fingindo concentração na página do Word, metade preenchida, mas nem de longe sobre meus personagens fictícios.

    Queria irritá-la só um pouquinho, como ela me irrita, mas sempre dá errado. Leila me olha como se eu fosse um inseto estranho e não diz nada. Afinal, eu a convidei não foi assim?

    Ela anda e as tábuas do velho casarão rangem como se reclamassem. “Até as tábuas reclamam de você, querida”.

    — Pegue o carro — sugiro — há um barzinho um quilômetro daqui, é melhor do que ficar aqui pintando as unhas de roxo e ouvindo Iron Maiden.
    Na verdade não queria ficar sozinho, mas bastava-me saber que ela estava na casa, não à minha frente. Leila pegou as chaves do jipe e me deu as costas sem mais uma palavra.
   
    O palavrão ficou engasgado por causa da dor causada pela queimadura de cigarro. “Quem manda fumar dirigindo sua tonta? E quem mandou vir com aquele imbecil pra esse fim de mundo?” O bar se revelou um nojo, um misto de cheiro de cerveja e do banheiro quebrado. Leila bebeu alguma coisa só para não perder a viagem, depois voltou para a maldita casa caindo de velha que Mathias emprestou a Pedro.

    Ela não entendia porque o rico editor conservava uma velharia daquela, até tinha estilo, mas estava ruindo! E à noite o vento vindo do mar fazia sons estranhos quando ecoava por aquelas paredes emboloradas. Pedro podia achar interessante, ele tinha imaginação para isso, ela não.
    Estacionou o jipe em frente ao casarão e acendeu outro cigarro, não tinha pressa para entrar, com certeza Pedro continuava grudado no Mac. Acreditava que ele estava mesmo ficando corcunda de tanto se debruçar sobre o teclado, mas se recusava a usar óculos. Idiota.

    Leila andou até a borda no penhasco sobre o qual a casa estava assentada, a noite estava fria como todas as malditas noites ali. A única coisa bonita era o mar, mesmo à noite com as águas escuras como breu. Ela se espreguiçou fazendo estalar as juntas dos braços magrelos e acendeu mais um cigarro.

    Parecia uma chaminé andando com as mãos nos bolsos da jaqueta de couro detonada. Até que uma das Doc Marten roxas bateu com tudo em alguma coisa enterrada no chão. O dedão doeu e ela praguejou alto o bastante para Pedro ouvir, ele e quem passasse à meio quilômetro dali.
    Abaixou para ver o que tinha tentado inutilizar seu pé. Não era nada, só um velho balde parcialmente enterrado.

    — Mas essa... — ainda resmungou.

    As luzes da casa iluminavam parcialmente o que parecia ser um velho poço abandonado. Leila não queria dar outro tropeção no caco de balde de novo. Caminhou até o poço e olho para dentro dele.

    Não esperava ver nada mesmo, era noite. Com certeza ninguém usava o poço. Quando estava debruçada sobre os tijolinhos um forte odor a tingiu. Cheiro de coisa podre. Mais uma razão para odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poço. Fumou o último cigarro e o jogou no poço também. Era hora de entrar e dormir.

     Se ela tivesse ficado só mais um pouquinho... Teria visto a pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escuridão. Teria visto outras luzinhas também avermelhadas respondendo lá em baixo.

    O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou sob as cobertas. Tão fria, devia estar há algum tempo lá fora. Havia me arrependido de tê-la mandado sair, não gostei de ficar sozinho. É ridículo admitir, mas a casa estava começando a me dar medo. São sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me concentrar em alguma coisa.

    No início atribuí isso ao vento incessante no penhasco, mas vento algum fala coisas como “termine logo”, “mais três laudas”, “estamos com sede” ou “saia e venha ficar conosco”. Assim que Leila saiu ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja apenas cansaço.

    Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde você estava com a cabeça quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando dorme.

    “Temos sede, Pedro”, “sede”. “Dê-nos algo e terminará seu livro”. Foi o último sonho estranho que tive. E quando o dia amanheceu notei que não tinha sido o único a ter uma noite ruim. Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu. Mathias me ligou com seu ar bonachão e perguntou sobre o livro.

    — Quase terminado — respondi.

    Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras haviam sido consideradas perfeitas pela crítica, sem exceção. E sempre funcionava me retirar para essa casa longe de tudo para me concentrar, uma ideia de Mathias que deu muito certo.
    Mas porque eu estava com medo da casa agora?

    À noite mais uma vez debruçado sobre o teclado, só que Leila não apareceu para me perturbar, a visão de suas pernas quando ela punha os pés na mesa até que era boa...

    Página em branco. Uma hora. Duas horas. Página em branco. “Sede”. “Nunca mais, nunca mais...”. “Dê-nos de beber, Pedro, e terminaremos para você”.

    Quase saltei da cadeira, estava cochilando e havia uma leve ardência no meu pulso. Quando fui fechar o computador uma gota púrpura pingou no teclado.

    Não me lembrava de ter me ferido. Não me lembrava de ter dormido.

    Seja como for eu estava bem acordado, e a figura esquelética na janela sob as cortinas de mau gosto.

    — Como você entrou? — pergunto me pondo de pé.

    Minha indignação é puramente para esconder o mal estar que me faz suar frio.

    — Leila se for você isso não tem graça...

    Mas logo descubro que não é ela. Não pode ser. Nem com sua mais alta bota gótica Leila ficaria mais alta do que eu. E logo uma lufada de vento me fez ter certeza de que aquilo nunca poderia ser Leila. Nunca poderia ser humano.

    O rosto descarnado e a pele cinza não eram parecidos com nada que eu já tinha visto. Uma língua comprida serpenteava pela boca de dentes afiados enquanto o ser me olhava fixamente nos olhos.

    — Achei que tínhamos um trato. — a criatura silvou. — Você não cumpriu sua parte. Onde está nossa bebida?

    Como um sonho ruim o tempo congelou. Não tinha ideia do que ele estava falando, mas no fundo sabia que era tudo verdade.

    — Que bebida? — gaguejei.

    Recuaria se minhas pernas permitissem, mas não conseguia me mexer.

    Um dedo ossudo foi erguido e em uma fração de segundos estava encostado na minha testa arranhando a pele com a unha suja e comprida.
    Foi como cair durante um sonho, eu me via chegando naquela casa pela primeira vez. Via Mathias e Rita. Mathias me mostrou tudo e foi embora, tinha negócios na capital. Eu e Rita, minha namorada na época, ficamos ali.

    A imagem seguinte foi aterradora. Aquilo não podia ser eu! Senti o peso do machado que o que parecia ser eu pegou no porão. Rita dormia. Foi um golpe seco no pescoço. Mais daqueles monstros me circundavam e sussurravam coisas para eu fazer, aparentemente fracos demais para fazerem sozinhos. Depois que a matei arrastei-a para fora e a atirei no poço onde vi mãos semihumanas a recebendo e estraçalhando seu corpo jovem.

    Em seguida me sentei para escrever, o escritório estava cheio deles e todos me sussurravam o que fazer. Um livro em dois dias sem comer nem dormir, eu não precisava de nada. O Uivo da Besta foi lançado na primavera seguinte. O sumiço de Rita foi atribuído à um acidente, para todos os efeitos ela caiu no mar bêbada.

    Rita era bem parecida com Leila, gótica e revoltada. Ninguém contestou que ela bebia e eventualmente se drogava. Leila não usava drogas, mas ninguém colocaria a mão no fogo por ela...

    “Vá agora, Pedro”, “precisa terminar seu livro e nós precisamos beber”.

    Começo a procurar algo que não sei ao certo o quê. Então me lembro: o machado. Ao invés dele a criatura me estende um punhal curvo com uma lâmina de 30 centímetros.

    — Leila? Onde você está meu bem?

    São as únicas palavras que consigo dizer, como uma prece sinistra repetida uma dúzia de vezes.

    Ela aparece no topo da escada com o rosto parcialmente oculto pelas sombras.

    — O que foi agora?

    Meu corpo subiu cautelosamente os degraus. Só mais uma vez, repito para mim mesmo, só mais esse romance. O punhal curvo é bonito em movimento, a lâmina risca o ar. Meus olhos estão muito abertos quando rolo escada abaixo com uma dor terrível no estômago. Bem onde ela me acertou com suas Doc Marten, sempre odiei essas botas.

    A lâmina penetrou até o cabo no meu abdômen e a dor me fez sair do transe. Eu não queria ter saído. Estava lúcido quando a criatura farejou meu sangue. E ainda estava lúcido quando surgiram outras como ela e me arrastaram para o poço.

    Leila sente frio no escritório, mas não se importa. A luz do Mac de Pedro faz seu cabelo laranja parecer em chamas na penumbra. Ela não dorme e nem come há 48 horas. Se não estivesse em transe veria que não estava sozinha. Ela veria dezenas de criaturas cinzentas lhe sussurrando o que pôr na página branca que logo era preenchida.

    Mathias chegou no sábado pela manhã como havia combinado com Pedro. Não tocou a campainha, pois a casa não era sua? Ouviu o som das teclas do computador e outro mais... Foi direto para o escritório escuro.

    Ficou um pouco surpreso em ver Leila trabalhando. Como não adivinhou que aquela seria mais dura na queda? Mas que diferença isso fazia?
    Mathias pousou uma mão bem tratada no ombro nu da moça, ela parou de digitar. Mecanicamente como uma boneca.
    As criaturas se inclinaram em uma pequena reverência ao seu mestre.

    Ele se dirige à única humana ali:

    — Diga meu bem, você quer um editor?

Escrito por Lucélia Rodrigues

Filhas de Aqueloo

Filhas de Aqueloo
Qual é o meu nome? Ora, meu querido, eu não tenho nome. Para a nossa raça não há utilidade em ser chamada de Giselda ou Catarina. Em nosso desterro basta-nos olhar uma para outra e reconhecer a miséria que assola todas nós. Pois, afinal, de que adiantaria um nome em um lugar onde a escuridão toma conta de tudo. Sim, ou achas por acaso que vivemos em palácios dourados, mergulhadas em uma reluzente água azul índigo. Isso são mitos criados por algumas mentes infantis de tua raça. Em verdade, onde vivemos a luz do sol não chega e temos apenas por companhia o onipresente negrume e nossas próprias vozes atormentadas. Não que falemos muito lá embaixo, preferimos deixar as palavras para momentos mais intensos da nossa existência. O que se ouve são apenas gemidos, hora ou outra um grito ressoa nos lembrando constantemente da agonia que vivemos.

    A nossa condição é o maior mistério que nos aflige. Mas uma coisa é certa, não somos filhas do Altíssimo. Antes fomos criadas por algum demônio zombeteiro. Acredito, todavia, que somos feitas da mesma matéria que forma o vazio que nos cerca. Quem sabe não somos apenas isso, um grito solitário de angústia desse nada imenso? Da mesma forma que não conhecemos nossas origens ignoramos nosso destino. Somos obrigadas a suportar os mesmos rostos – as mesmas infelizes faces por um tempo parecido com a eternidade. Mas em algum momento – não sei precisar quando – algumas de nós passam a ser vistas cada vez menos, até que somem de vez. Acredito que acabamos por nos tornar mais e mais semelhantes ao vácuo profundo que já é a nossa alma – até nos misturarmos com a escuridão que nos cerca.

    Sim, nós sofremos mais por não termos lágrimas... Na maior parte de nossa existência somente vós podeis aplacar essa dor profunda. Vós e o amor que podemos juntos desfrutar. E como ocorre a ligação carnal entre os nossos corpos? Ora, não podes entender em face do que vê em minha anatomia. Mas esteja certo que tão logo um enfeitiçado desça ao mergulho fatal com uma de nós desaparece qualquer necessidade de explicação. O que sentem está fora de tudo que podes imaginar. As mais belas ninfas do parnaso não o levariam a tão profundo êxtase. Certamente nenhuma das donzelas que conheceste lhe proporcionou prazer comparável.

    Como sei o que sentem? Ora, amado, sabemos tudo o que sentem e o que pensam desde o instante em que nossos olhos se enamoram dos vossos. De outra forma, mesmo o pensamento seria estranho para nós. Que sentido teria pensar dado o vazio que nos assola? Lá embaixo conhecemos apenas nossa eterna angústia e nada mais temos de vida interior. É por isso! Ah, é por isso que esses segundos que vivemos ao lado de nossos amados são como pérolas cintilantes. Desses instantes iluminados vem esse estranho efeito. Talvez pela intensidade da ligação que se forma somos capazes de conhecer toda a sua história! Vossas mentes transparecem-se a nós enquanto dura a nossa paixão. Vivemos por séculos, por isso acumulamos o conhecimento das eras. Mais que vã dádiva! De que nos serve, afinal?

    Declamamos as mais belas odes aos homens que conhecemos, é claro. Tal nada mais é que uma forma de expressarmos nosso amor no parco tempo que nos é permitido. No meu caso, uso o verbo para contar-lhe sobre nós. É o que faço agora para aplacar tua curiosidade que, afinal de contas, nunca vi igual. Nunca tão vívido interesse surgiu nos outros homens. O que queres saber, agora? Podes perguntar qualquer coisa. Ora, sim, é claro que nos reproduzimos – como vós, aliás, com vós.

    O surgir de uma nova vida é como uma benção iluminada mesmo para nós desgraçadas! A vida é gestada em nosso ventre da mesma forma que no ventre de vossas mulheres. Já sabemos desde o início que as nossas filhas serão fêmeas. Como sois vós que nos fecundam, a natureza fez por bem não conceder machos da nossa espécie. Quando elas nascem trazem em si um brilho que na maior parte do tempo é desconhecido para nós. Dura pouco, é claro, mas é o suficiente para que aquela inocência e alegria pura aplaque parte do nosso sofrimento. Apenas lembre-se da luz que suas próprias crianças trazem em si e me entenderá. A diferença é que nossos tormentos são maiores que os vossos... Enfim, como disse, o brilho acaba logo. Um dia as pequenas descobrem a sina a que estão condenadas. O momento em que percebemos a verdade é terrível. O mundo cai quando compreendemos que nunca haverá um príncipe encantado em nossa história... Mais do que isso, mesmo o mais fugidio contentamento nos será negado. Só nos resta a paixão e o prazer – intensos, mas efêmeros – do acasalamento.

    Ritual torpe e sublime! O acasalamento – quando a minha raça e a tua se unem como uma. Somos temidas e evitadas, mas se porventura caíreis em nossos braços não vos resta nada a não ser desejo. São poucos astutos como Ulisses e a maioria de vós não carregais velas suficientes em vossos navios. E todos ouvem. E por ouvirem perdem a razão. A lucidez se desfaz diante das notas de nossas canções, que superam e muito os mais belos instrumentos de tua raça. O fogo que acende em vossos corações os consome instantaneamente em terna devoção... mas isso não preciso explicar. Sabes disso. Podes sentir agora mesmo a violência do sentimento.

    O que vou explicar, visto que teus olhos pedem mais entendimento e meu coração não pode negá-lo, é sobre o que acontecerá daqui em diante. Como se dará os últimos momentos de tua vida. Ora, meu querido, tenha a certeza de que serão maravilhosos - sobre isso não há dúvida. Bem, depois que vossa razão se estilhaça diante da nossa voz nós namoramos. Sim, namoramos como vós. Trocamos gracejos, carícias, olhares. Brincamos uns com os outros, nos fazemos de difíceis. É raro que essa diversão demore muito. Mais raro ainda que se transforme numa confissão intima das nossas dores... No fim, tudo termina no beijo. Em seguida, o mergulho.

    Durante a descida o júbilo é tão grande que chegamos a pensar que nossos amados permanecerão para sempre junto ao nosso peito. Nossos corpos interagem em ondulações vigorosas – ao mesmo tempo em que nos levam ao êxtase nos impulsionam em direção ao fundo do oceano. Quando o prazer alcança o seu cume estamos rodeados das mais belas imagens que podereis ver. Primeiro, os corais se unem aos cardumes em uma dança de cores mais variadas do que as dos vossos campos e arco-íris. Depois, a imensidão azul se revela: vereis baleias, lulas, polvos e outras criaturas gigantescas diferentes de tudo que vossas mentes podem conceber. Ao final da jornada flutuaremos sobre vulcões borbulhantes e reluzentes e adentraremos cavernas de cristais sibilantes. Entre as galerias ancestrais o sopro de vida que guardastes da superfície findará...

    Quando finalmente nos encontramos no interior do abismo escuro não carregamos mais que um cadáver. No mesmo instante em que  se dissipa o sublime deleite do ato de amor sobrevém o desespero. Ainda com vossos corpos entre nossos braços choramos amargamente. Maldita seja, mortal adaga que nos fere o coração! As torturas desse momento superam mesmo o fim da infância. Gritamos e urramos até onde nossas forças permitem. Quando terminamos, não somos nada mais que uma criatura exausta e faminta... só nos resta nesse momento uma opção: atender às imperiosas exigências de nossos instintos.

    É aqui que as mais horríveis lendas sobre nós se confirmam. Vossos corpos transformam-se em um mero pedaço de carne – o único alimento que pode nos saciar depois dos prantos e prazeres intensos. Servimo-nos dele com a voracidade das feras carniceiras. Engolimos músculos, gordura e todos os órgãos e fluídos que não forem para nós um veneno. Algumas vezes chegamos até a roer os ossos, em especial quando o tutano escondido em seu interior possa nutrir uma possível cria que carreguemos no ventre. Por favor, não nos recrimine, pois aqui nada fica do sentimento que alguns instantes atrás incendiava nossas almas. Enquanto devoramos o que resta de vós somos apenas animais selvagens garantindo a própria sobrevivência. Depois que terminamos caímos em sono profundo para depois acordarmos no mesmo cenário desolador que já conhecemos.

    É engraçado como o teu passado não importa mais. Depois de tudo que ouviu, do que agora sabe... Vejo os teus tesouros, o que está prestes a perder por mim. Tens jóias e um belo palácio... Vejo tua esposa, aflita pelo teu regresso. Teu pequeno bebê, nem dois anos completos – ainda balbucia os primeiros verbos.  Ainda podes ouvi-lo chamar-te pai... Tens uma oportunidade sem igual, fuja meu querido! Mate-me com a faca que guarda em teu cinto! Aproveite! Acerte-me no peito e liberte-se, é o bastante para quebrar o feitiço! Assim também abrevias minha agonia... o calvário deste mundo!

    Não, amado não hesite.  Dói-me a alma saber que mais uma vez privarei um pobre condenado do brilho da vida. Espere! Não faça isso!...

    Jogaste fora a única arma que dispunha. A chance de nos livrarmos desta maldição. Que vã esperança me acometeu. É impossível livrarem-se da cegueira depois que vossos olhos já estão cerrados. Não há outro destino para nós...

    Pois me acompanhe, meu amado, para o mergulho fatal. Aprecio a forma como ouviste atento a minha história e teu interesse em conhecer nossa sina. Tu quiseste conhecer-me, verdadeiramente, conhecer minha alma, e por isso serei infinitamente grata. Percebo agora que não posso pagar-lhe de forma diferente a que pago todos os outros. Irás fenecer nessas frias e tranquilas águas. Prometo-lhe, contudo, que farei tua viagem a mais bela e extasiante possível. Conhecerás algumas maravilhas das profundezas antes do momento final. Poderás ainda deleitar-se dos intensos prazeres de meu amor e, então, se despedirá do mundo com um sorriso no rosto. Que os céus possam trazer-me uma pequenina amaldiçoada dessa união. Falarei para ela de seu belo e amoroso pai... Mas não pense mais sobre isso. Está na hora! Vamos!

Escrito por Francisco Marques

A Cartomante, de Machado de Assis

A Cartomante

HAMLET observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que
sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao
moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela,
por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia
por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora
gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as
cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você
me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua
causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe
queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso,
quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois,
repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela
podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa
ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que
havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não
acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que
mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as
ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um
arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos
desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e
ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os
ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação
total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não
possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque
negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do
mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser
amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele,
correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de
sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos,
onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das
Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da
Guarda Velha, olhando de passagcm para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação
das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela
seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a
vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo
preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No
princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama
formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado.
Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como
meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não
desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos,
olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que
ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis.
Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher,
enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a
ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de
alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a
mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes
amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase
uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o
que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam
os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as
damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser
agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os
olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os
consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas.
Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e
de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então
que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do
bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo
menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez
passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo.
Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma
serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos
num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e
subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a
batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o
sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,
pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada
mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A
confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve
medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de
Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma
paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaramse,
e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso
um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do
marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante
para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo.
Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeua
por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu
mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser
advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião
de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento:
— a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse
é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse
ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que
era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das
cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se
sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao
outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à
casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de
algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses
era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se,
sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se
corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de
Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de
meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural
chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a
letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas
essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com
os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo
de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha
medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de
recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar
algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem
ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez
mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa
que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma
suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto
fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as
palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era
ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela.
"Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela
voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê?
Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto.
Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo.
Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando
que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois
rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção
do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou
seguir a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..."
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo
voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da
Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma
carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No
fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi,
ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele
desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando
todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua.
Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era
grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns
fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O
cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele
respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois
fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao
longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e
tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a ponco moveu outra vez as asas,
mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens,
safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos,
pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as
palavras da carta: "Vem, já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia.
A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se
diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de
tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos
extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe
dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que
perdia ele, se... ?
Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e
rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus
comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada.
Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era
tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele
tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante.
Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por
uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma
salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos.
Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do
que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com
as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no
rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e
enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana,
morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas
sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande
susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra
vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas
descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes;
depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declaroulhe
que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro;
ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela:
ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de
Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as
cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendedo a mão por
cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu,
como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante
foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho
destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de
dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha
um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava
o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer
mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante
fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do
senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele,
falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a
escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava
acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua
estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o
céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que
chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram
íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu
também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser
algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa;
parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à
antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as
palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o
estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O
presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as
velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o
com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado;
mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá,
vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e
graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos,
uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas
felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo
olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão
um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo,
interminável.
Daí a ponco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro
do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra,
e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e
foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito
de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada.
Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no
chão.
FIM
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