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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Sob uma ótica diferente ( Minotauro )

Sob uma ótica diferente
( Minotauro )
       Acho que sou um dos poucos seres que se lembra de seu nascimento. Minha mãe, estirada sobre a cama, uma escrava me segurando e me mostrando para um homem. Senti, instintivamente, que aquele homem não era meu pai, apesar de ser o marido de minha mãe. O homem me olhou com fúria em seus olhos. Percebi, ali, no momento que vinha ao mundo, que teria uma vida difícil. 
       A verdade foi pior que meus pensamentos, desde cedo fui segregado, não ficava com as crianças do palácio, não ficava no colo de minha mãe, meus alimentos eram atirados de certa distância pelas escravas. Por algum motivo eu sempre estava vigiado por soldados muito bem armados. 
       Sei que já nasci diferente, meu desenvolvimento físico e mental foi rápido, senti que crescia mais intensamente do que qualquer outra criança do palácio. Via minha mãe raras vezes. Quanto ao homem que morava com ela acho que o vi uma ou duas vezes depois de nascido. Meu físico se desenvolvia rápido, mas não conseguia falar, pelas minhas cordas vocais saíam sons que ninguém entendia. Eu não conseguia me fazer entender. Minha cabeça também era anormal, muito grande, crescida. Por longo tempo nunca me vi no espelho, até que aconteceu. Numa das poucas vezes que me foi permitido sair de minha câmara cheguei até um pequeno lago, em um dos muitos espalhados pelo palácio. Com receio me aproximei e vi, pela primeira vez, meu reflexo na água. Eu era totalmente diferente das outras crianças que via no palácio. Era mais forte, mais alto, minhas mãos eram enormes assim como os pés, mas da cintura para baixo eu era muito peludo. Tinha mais pelos que os soldados que me vigiavam constantemente.
       Um dia, soldados chegaram à minha câmara e me aprisionaram com fortes correntes. Tentei protestar contra aquilo, mas de minha boca os sons que saíam não eram entendidos pelos homens que me levavam. Pelos sinuosos corredores do palácio fui sendo guiado até chegar a um salão. Ali estava, novamente, aquele homem que vivia com mamãe. Alto, forte, poderoso, ele falava com outro homem, mais idoso, uma face de sábio, segurando uma enorme chave, ao fundo, uma porta grande, alta e forte. Com certeza aquela chave abria aquela porta.
       O homem, acho que pela primeira e única vez em minha vida, veio ter comigo e me disse: “A  partir de agora vai viver dentro deste local. Não quero nunca mais ver sua horrenda face.” 
       Novamente me lamentei. Como os deuses poderiam ser tão cruéis comigo? O que tinha feito para merecer aquilo? Os soldados me empurraram pela porta, saindo em seguida, o ruído da porta se fechando me dando a certeza de que estava, para sempre, separado do mundo. 
       Fiquei dias ali na porta, chutando, chorando, berrando, amaldiçoando os deuses, mas nada adiantava. Nem comida me deram. Desesperado, pensando que iria morrer de inanição, me aventurei pelo emaranhado de túneis e corredores que compunham minha nova morada.
       Em pouco tempo perdi meu senso de orientação, estava irremediavelmente perdido dentro daquele lugar.      
       Estava a ponto de morrer de inanição quando algo aconteceu, vi um homem ali dentro. Ele estava tão perplexo e perdido como eu mesmo. Com certa alegria, por finalmente ter alguma companhia fui em sua direção. Vi quando me olhou assustado, saindo em desabalada carreira. Eu o segui, chamando por ele, meus gritos reverberavam pelos corredores sem fim daquele local. Enfim o alcancei, ele estava parado, olhos vítreos, minha presença o apavorava. A última coisa que lembro foi de seu olhar fixo em mim e suas últimas palavras: “Então é verdade, Poseidon criou essa monstruosidade.......” 
       Ele morreu em seguida, tinha caído e batido a cabeça em uma das muitas pedras daquele local. Fiquei atônito, estava novamente só. Com pesar, fiquei algumas horas velando aquele cadáver, e então tive um desmaio. A fome me minava as forças. Ao me recobrar, olhei o cadáver ali, deuses, não..., mas que outra alternativa eu teria?  Nunca, até então, comera carne. E, justo na primeira vez, comi carne humana. Tive de devorar um cadáver. Era isso ou morrer de inanição. 
       De tempos em tempos encontrei novos homens e mulheres. E era sempre a mesma coisa, ao me verem corriam apavorados, então eu encontrava seus cadáveres e  os devorava  para não morrer de fome. 
       Essa vida de angústia e sofrimento me perseguiu por muitos e muitos anos, então os deuses, como que compadecidos de minha sina, resolveram agir. Vi quando ele chegou, era diferente dos outros homens e mulheres. Trazia consigo uma lança e uma espada, em seus olhos uma firme determinação. Uma das mãos desenrolava algo, parecia um novelo. Este homem conseguiria voltar para a porta da minha prisão. Sinceramente fiquei alegre com a presença dele. Levantei-me de onde estava e fui em sua direção, saudando o estranho, apesar de ter aprendido há muito tempo que os homens não conseguiam entender minha língua. Quando estava bem próximo vi que o estranho pegou algo no chão, uma arma, uma lança, tal qual as que eu vira sendo usadas pelos soldados do palácio. O homem mirou a lança em mim, e com perfeita pontaria atravessou meu dorso com ela. Dei um grito de angústia e dor que reverberou por toda aquela construção. Deitado no chão, me contorcendo de dor, ainda vi Teseu erguer sua espada para o golpe final. Novamente meu dorso foi perfurado, sua espada encontrou meu coração e minha alma partiu para o Hades.  
       Só então soube de certas coisas. No Hades fiquei sabendo que eu era chamado de Minotauro. Era filho de Pasífae, mulher de Minos, com um touro branco enviado por Poseidon, deus dos mares para castigar Minos por sua petulância ante os deuses. Minha mãe foi amaldiçoada apaixonando-se pelo touro do deus dos mares. Da união profana de uma mulher com um touro eu nasci. Metade humano, metade touro, e por muito tempo considerado um monstro.
       Também soube que aqueles homens e mulheres que fui obrigado a comer não passavam de vítimas exigidas por Minos para não tomar e destruir a cidade de Atenas. O perverso usava as lendas e fábulas que teciam sobre mim, o monstruoso meio homem, meio touro, para subjugar a brava gente ateniense. O local em que vivia era chamado Labirinto, construção que ficava embaixo do palácio de Cnossos em Creta.
       O homem sábio que o construiu chamava-se Dédalo.
       Somente após a minha morte é que fiquei sabendo, enfim, que nunca poderia ter sido uma criança normal, por mais que minha alma ansiasse por isso.

Escrito por Abelardo Domene Pedroga

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