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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Inspiração

INSPIRAÇÃO
      O ploc da bola de chiclete cor de rosa foi bem próximo ao meu ouvido direito. Já tinha falado milhões de vezes para ela não fazer isso, ainda mais quando eu estava trabalhando.

    Leila fingiu que não percebeu que eu fingia ignorá-la, brincou com uns papéis soltos e depois se sentou com os pés em cima da minha mesa, e ainda por cima com aquelas botas. As escolhidas da vez eram da Doc Marten, meio palmo de salto e um couro tingido de roxo que me dava arrepios só de olhar.

    Novo ploc da bolha rosa. Se Mathias, meu editor, visse minha cara ia morrer de rir. Segundo ele, Leila era o jeito que eu tinha arranjado para me sentir jovem de novo.   O velho clichê do divorciado de meia idade que arranja uma namorada que parece sua filha. Ele achava a prática saudável e ficou feliz quando lhe contei sobre ela, mas não foi capaz de esconder o choque quando os apresentei. Não era culpa dele. Meia dúzia de piercings e um cabelo laranja fazem isso com qualquer um.

    Perguntei-me por que a trouxe comigo quando resolvi vir para esse fim de mundo terminar meu último romance. Sim, é muito bonita apesar de todo esse metal na cara, me faz rir também... Ah, seja sincero consigo mesmo Virgílio: você não queria dormir sozinho.

    — Está chato aqui. — ela resmunga enrolando uma mecha do cabelo laranja.

    Percebo que as unhas ontem azuis hoje estão verdes. Talvez Mathias tivesse razão, ela era jovem demais para mim. Talvez na volta pudesse mandá-la para sua casa, pela primeira vez me dou conta de que nem sabia se Leila morava com os pais ou não antes de chegar ao meu apartamento com uma mochila de lona preta três dias depois de nos conhecermos.

    Devia ter lhe dito: olhe querida, nos damos muito bem em muitos sentidos, mas essa coisa de morar juntos é um pouco demais. Pensei em dizer, mas perdia as palavras sempre que ela me encarava com aqueles olhos zombeteiros cheios de lápis preto. Às vezes me sentia um idiota.

    — Vamos sair? — não convidou, bufou irritada levantando da cadeira que rodopiou e ameaçou cair tamanha a brusquidão do movimento.

    — Você pode ir se quiser. — digo — Tenho que terminar este capítulo.

    A verdade é que, desde que ela me interrompeu com seu odioso chiclete cor de rosa, tinha parado de trabalhar. Abri outro documento, minhas anotações pessoais e comecei a escrever obsessivamente o que ia pensando, isto é, Leila. Como me livrar de Leila.

    — E eu vou fazer o quê sozinha? — ela torna — Essa cidade é o c... do mundo.

    — Deveria ter ficado em casa. — falo fingindo concentração na página do Word, metade preenchida, mas nem de longe sobre meus personagens fictícios.

    Queria irritá-la só um pouquinho, como ela me irrita, mas sempre dá errado. Leila me olha como se eu fosse um inseto estranho e não diz nada. Afinal, eu a convidei não foi assim?

    Ela anda e as tábuas do velho casarão rangem como se reclamassem. “Até as tábuas reclamam de você, querida”.

    — Pegue o carro — sugiro — há um barzinho um quilômetro daqui, é melhor do que ficar aqui pintando as unhas de roxo e ouvindo Iron Maiden.
    Na verdade não queria ficar sozinho, mas bastava-me saber que ela estava na casa, não à minha frente. Leila pegou as chaves do jipe e me deu as costas sem mais uma palavra.
   
    O palavrão ficou engasgado por causa da dor causada pela queimadura de cigarro. “Quem manda fumar dirigindo sua tonta? E quem mandou vir com aquele imbecil pra esse fim de mundo?” O bar se revelou um nojo, um misto de cheiro de cerveja e do banheiro quebrado. Leila bebeu alguma coisa só para não perder a viagem, depois voltou para a maldita casa caindo de velha que Mathias emprestou a Pedro.

    Ela não entendia porque o rico editor conservava uma velharia daquela, até tinha estilo, mas estava ruindo! E à noite o vento vindo do mar fazia sons estranhos quando ecoava por aquelas paredes emboloradas. Pedro podia achar interessante, ele tinha imaginação para isso, ela não.
    Estacionou o jipe em frente ao casarão e acendeu outro cigarro, não tinha pressa para entrar, com certeza Pedro continuava grudado no Mac. Acreditava que ele estava mesmo ficando corcunda de tanto se debruçar sobre o teclado, mas se recusava a usar óculos. Idiota.

    Leila andou até a borda no penhasco sobre o qual a casa estava assentada, a noite estava fria como todas as malditas noites ali. A única coisa bonita era o mar, mesmo à noite com as águas escuras como breu. Ela se espreguiçou fazendo estalar as juntas dos braços magrelos e acendeu mais um cigarro.

    Parecia uma chaminé andando com as mãos nos bolsos da jaqueta de couro detonada. Até que uma das Doc Marten roxas bateu com tudo em alguma coisa enterrada no chão. O dedão doeu e ela praguejou alto o bastante para Pedro ouvir, ele e quem passasse à meio quilômetro dali.
    Abaixou para ver o que tinha tentado inutilizar seu pé. Não era nada, só um velho balde parcialmente enterrado.

    — Mas essa... — ainda resmungou.

    As luzes da casa iluminavam parcialmente o que parecia ser um velho poço abandonado. Leila não queria dar outro tropeção no caco de balde de novo. Caminhou até o poço e olho para dentro dele.

    Não esperava ver nada mesmo, era noite. Com certeza ninguém usava o poço. Quando estava debruçada sobre os tijolinhos um forte odor a tingiu. Cheiro de coisa podre. Mais uma razão para odiar aquele lugar. Leila cuspiu no capim e jogou o balde no poço. Fumou o último cigarro e o jogou no poço também. Era hora de entrar e dormir.

     Se ela tivesse ficado só mais um pouquinho... Teria visto a pequena brasa do cigarro fazer uma graciosa pirueta na escuridão. Teria visto outras luzinhas também avermelhadas respondendo lá em baixo.

    O corpo esguio e frio dela me tirou do cochilo quando entrou sob as cobertas. Tão fria, devia estar há algum tempo lá fora. Havia me arrependido de tê-la mandado sair, não gostei de ficar sozinho. É ridículo admitir, mas a casa estava começando a me dar medo. São sons de passos e pequenas vozes sempre que tento me concentrar em alguma coisa.

    No início atribuí isso ao vento incessante no penhasco, mas vento algum fala coisas como “termine logo”, “mais três laudas”, “estamos com sede” ou “saia e venha ficar conosco”. Assim que Leila saiu ouvi todas essas coisas. Vou tentar dormir, talvez seja apenas cansaço.

    Que imbecil! Ele fala dormindo! Af, onde você estava com a cabeça quando aceitou vir Leila? Ainda por cima chuta quando dorme.

    “Temos sede, Pedro”, “sede”. “Dê-nos algo e terminará seu livro”. Foi o último sonho estranho que tive. E quando o dia amanheceu notei que não tinha sido o único a ter uma noite ruim. Leila tinha olheiras que nem a pesada maquiagem escondeu. Mathias me ligou com seu ar bonachão e perguntou sobre o livro.

    — Quase terminado — respondi.

    Era mentira, claro. Estava muito longe de acabar. Minhas obras haviam sido consideradas perfeitas pela crítica, sem exceção. E sempre funcionava me retirar para essa casa longe de tudo para me concentrar, uma ideia de Mathias que deu muito certo.
    Mas porque eu estava com medo da casa agora?

    À noite mais uma vez debruçado sobre o teclado, só que Leila não apareceu para me perturbar, a visão de suas pernas quando ela punha os pés na mesa até que era boa...

    Página em branco. Uma hora. Duas horas. Página em branco. “Sede”. “Nunca mais, nunca mais...”. “Dê-nos de beber, Pedro, e terminaremos para você”.

    Quase saltei da cadeira, estava cochilando e havia uma leve ardência no meu pulso. Quando fui fechar o computador uma gota púrpura pingou no teclado.

    Não me lembrava de ter me ferido. Não me lembrava de ter dormido.

    Seja como for eu estava bem acordado, e a figura esquelética na janela sob as cortinas de mau gosto.

    — Como você entrou? — pergunto me pondo de pé.

    Minha indignação é puramente para esconder o mal estar que me faz suar frio.

    — Leila se for você isso não tem graça...

    Mas logo descubro que não é ela. Não pode ser. Nem com sua mais alta bota gótica Leila ficaria mais alta do que eu. E logo uma lufada de vento me fez ter certeza de que aquilo nunca poderia ser Leila. Nunca poderia ser humano.

    O rosto descarnado e a pele cinza não eram parecidos com nada que eu já tinha visto. Uma língua comprida serpenteava pela boca de dentes afiados enquanto o ser me olhava fixamente nos olhos.

    — Achei que tínhamos um trato. — a criatura silvou. — Você não cumpriu sua parte. Onde está nossa bebida?

    Como um sonho ruim o tempo congelou. Não tinha ideia do que ele estava falando, mas no fundo sabia que era tudo verdade.

    — Que bebida? — gaguejei.

    Recuaria se minhas pernas permitissem, mas não conseguia me mexer.

    Um dedo ossudo foi erguido e em uma fração de segundos estava encostado na minha testa arranhando a pele com a unha suja e comprida.
    Foi como cair durante um sonho, eu me via chegando naquela casa pela primeira vez. Via Mathias e Rita. Mathias me mostrou tudo e foi embora, tinha negócios na capital. Eu e Rita, minha namorada na época, ficamos ali.

    A imagem seguinte foi aterradora. Aquilo não podia ser eu! Senti o peso do machado que o que parecia ser eu pegou no porão. Rita dormia. Foi um golpe seco no pescoço. Mais daqueles monstros me circundavam e sussurravam coisas para eu fazer, aparentemente fracos demais para fazerem sozinhos. Depois que a matei arrastei-a para fora e a atirei no poço onde vi mãos semihumanas a recebendo e estraçalhando seu corpo jovem.

    Em seguida me sentei para escrever, o escritório estava cheio deles e todos me sussurravam o que fazer. Um livro em dois dias sem comer nem dormir, eu não precisava de nada. O Uivo da Besta foi lançado na primavera seguinte. O sumiço de Rita foi atribuído à um acidente, para todos os efeitos ela caiu no mar bêbada.

    Rita era bem parecida com Leila, gótica e revoltada. Ninguém contestou que ela bebia e eventualmente se drogava. Leila não usava drogas, mas ninguém colocaria a mão no fogo por ela...

    “Vá agora, Pedro”, “precisa terminar seu livro e nós precisamos beber”.

    Começo a procurar algo que não sei ao certo o quê. Então me lembro: o machado. Ao invés dele a criatura me estende um punhal curvo com uma lâmina de 30 centímetros.

    — Leila? Onde você está meu bem?

    São as únicas palavras que consigo dizer, como uma prece sinistra repetida uma dúzia de vezes.

    Ela aparece no topo da escada com o rosto parcialmente oculto pelas sombras.

    — O que foi agora?

    Meu corpo subiu cautelosamente os degraus. Só mais uma vez, repito para mim mesmo, só mais esse romance. O punhal curvo é bonito em movimento, a lâmina risca o ar. Meus olhos estão muito abertos quando rolo escada abaixo com uma dor terrível no estômago. Bem onde ela me acertou com suas Doc Marten, sempre odiei essas botas.

    A lâmina penetrou até o cabo no meu abdômen e a dor me fez sair do transe. Eu não queria ter saído. Estava lúcido quando a criatura farejou meu sangue. E ainda estava lúcido quando surgiram outras como ela e me arrastaram para o poço.

    Leila sente frio no escritório, mas não se importa. A luz do Mac de Pedro faz seu cabelo laranja parecer em chamas na penumbra. Ela não dorme e nem come há 48 horas. Se não estivesse em transe veria que não estava sozinha. Ela veria dezenas de criaturas cinzentas lhe sussurrando o que pôr na página branca que logo era preenchida.

    Mathias chegou no sábado pela manhã como havia combinado com Pedro. Não tocou a campainha, pois a casa não era sua? Ouviu o som das teclas do computador e outro mais... Foi direto para o escritório escuro.

    Ficou um pouco surpreso em ver Leila trabalhando. Como não adivinhou que aquela seria mais dura na queda? Mas que diferença isso fazia?
    Mathias pousou uma mão bem tratada no ombro nu da moça, ela parou de digitar. Mecanicamente como uma boneca.
    As criaturas se inclinaram em uma pequena reverência ao seu mestre.

    Ele se dirige à única humana ali:

    — Diga meu bem, você quer um editor?

Escrito por Lucélia Rodrigues

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