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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Filhas de Aqueloo

Filhas de Aqueloo
Qual é o meu nome? Ora, meu querido, eu não tenho nome. Para a nossa raça não há utilidade em ser chamada de Giselda ou Catarina. Em nosso desterro basta-nos olhar uma para outra e reconhecer a miséria que assola todas nós. Pois, afinal, de que adiantaria um nome em um lugar onde a escuridão toma conta de tudo. Sim, ou achas por acaso que vivemos em palácios dourados, mergulhadas em uma reluzente água azul índigo. Isso são mitos criados por algumas mentes infantis de tua raça. Em verdade, onde vivemos a luz do sol não chega e temos apenas por companhia o onipresente negrume e nossas próprias vozes atormentadas. Não que falemos muito lá embaixo, preferimos deixar as palavras para momentos mais intensos da nossa existência. O que se ouve são apenas gemidos, hora ou outra um grito ressoa nos lembrando constantemente da agonia que vivemos.

    A nossa condição é o maior mistério que nos aflige. Mas uma coisa é certa, não somos filhas do Altíssimo. Antes fomos criadas por algum demônio zombeteiro. Acredito, todavia, que somos feitas da mesma matéria que forma o vazio que nos cerca. Quem sabe não somos apenas isso, um grito solitário de angústia desse nada imenso? Da mesma forma que não conhecemos nossas origens ignoramos nosso destino. Somos obrigadas a suportar os mesmos rostos – as mesmas infelizes faces por um tempo parecido com a eternidade. Mas em algum momento – não sei precisar quando – algumas de nós passam a ser vistas cada vez menos, até que somem de vez. Acredito que acabamos por nos tornar mais e mais semelhantes ao vácuo profundo que já é a nossa alma – até nos misturarmos com a escuridão que nos cerca.

    Sim, nós sofremos mais por não termos lágrimas... Na maior parte de nossa existência somente vós podeis aplacar essa dor profunda. Vós e o amor que podemos juntos desfrutar. E como ocorre a ligação carnal entre os nossos corpos? Ora, não podes entender em face do que vê em minha anatomia. Mas esteja certo que tão logo um enfeitiçado desça ao mergulho fatal com uma de nós desaparece qualquer necessidade de explicação. O que sentem está fora de tudo que podes imaginar. As mais belas ninfas do parnaso não o levariam a tão profundo êxtase. Certamente nenhuma das donzelas que conheceste lhe proporcionou prazer comparável.

    Como sei o que sentem? Ora, amado, sabemos tudo o que sentem e o que pensam desde o instante em que nossos olhos se enamoram dos vossos. De outra forma, mesmo o pensamento seria estranho para nós. Que sentido teria pensar dado o vazio que nos assola? Lá embaixo conhecemos apenas nossa eterna angústia e nada mais temos de vida interior. É por isso! Ah, é por isso que esses segundos que vivemos ao lado de nossos amados são como pérolas cintilantes. Desses instantes iluminados vem esse estranho efeito. Talvez pela intensidade da ligação que se forma somos capazes de conhecer toda a sua história! Vossas mentes transparecem-se a nós enquanto dura a nossa paixão. Vivemos por séculos, por isso acumulamos o conhecimento das eras. Mais que vã dádiva! De que nos serve, afinal?

    Declamamos as mais belas odes aos homens que conhecemos, é claro. Tal nada mais é que uma forma de expressarmos nosso amor no parco tempo que nos é permitido. No meu caso, uso o verbo para contar-lhe sobre nós. É o que faço agora para aplacar tua curiosidade que, afinal de contas, nunca vi igual. Nunca tão vívido interesse surgiu nos outros homens. O que queres saber, agora? Podes perguntar qualquer coisa. Ora, sim, é claro que nos reproduzimos – como vós, aliás, com vós.

    O surgir de uma nova vida é como uma benção iluminada mesmo para nós desgraçadas! A vida é gestada em nosso ventre da mesma forma que no ventre de vossas mulheres. Já sabemos desde o início que as nossas filhas serão fêmeas. Como sois vós que nos fecundam, a natureza fez por bem não conceder machos da nossa espécie. Quando elas nascem trazem em si um brilho que na maior parte do tempo é desconhecido para nós. Dura pouco, é claro, mas é o suficiente para que aquela inocência e alegria pura aplaque parte do nosso sofrimento. Apenas lembre-se da luz que suas próprias crianças trazem em si e me entenderá. A diferença é que nossos tormentos são maiores que os vossos... Enfim, como disse, o brilho acaba logo. Um dia as pequenas descobrem a sina a que estão condenadas. O momento em que percebemos a verdade é terrível. O mundo cai quando compreendemos que nunca haverá um príncipe encantado em nossa história... Mais do que isso, mesmo o mais fugidio contentamento nos será negado. Só nos resta a paixão e o prazer – intensos, mas efêmeros – do acasalamento.

    Ritual torpe e sublime! O acasalamento – quando a minha raça e a tua se unem como uma. Somos temidas e evitadas, mas se porventura caíreis em nossos braços não vos resta nada a não ser desejo. São poucos astutos como Ulisses e a maioria de vós não carregais velas suficientes em vossos navios. E todos ouvem. E por ouvirem perdem a razão. A lucidez se desfaz diante das notas de nossas canções, que superam e muito os mais belos instrumentos de tua raça. O fogo que acende em vossos corações os consome instantaneamente em terna devoção... mas isso não preciso explicar. Sabes disso. Podes sentir agora mesmo a violência do sentimento.

    O que vou explicar, visto que teus olhos pedem mais entendimento e meu coração não pode negá-lo, é sobre o que acontecerá daqui em diante. Como se dará os últimos momentos de tua vida. Ora, meu querido, tenha a certeza de que serão maravilhosos - sobre isso não há dúvida. Bem, depois que vossa razão se estilhaça diante da nossa voz nós namoramos. Sim, namoramos como vós. Trocamos gracejos, carícias, olhares. Brincamos uns com os outros, nos fazemos de difíceis. É raro que essa diversão demore muito. Mais raro ainda que se transforme numa confissão intima das nossas dores... No fim, tudo termina no beijo. Em seguida, o mergulho.

    Durante a descida o júbilo é tão grande que chegamos a pensar que nossos amados permanecerão para sempre junto ao nosso peito. Nossos corpos interagem em ondulações vigorosas – ao mesmo tempo em que nos levam ao êxtase nos impulsionam em direção ao fundo do oceano. Quando o prazer alcança o seu cume estamos rodeados das mais belas imagens que podereis ver. Primeiro, os corais se unem aos cardumes em uma dança de cores mais variadas do que as dos vossos campos e arco-íris. Depois, a imensidão azul se revela: vereis baleias, lulas, polvos e outras criaturas gigantescas diferentes de tudo que vossas mentes podem conceber. Ao final da jornada flutuaremos sobre vulcões borbulhantes e reluzentes e adentraremos cavernas de cristais sibilantes. Entre as galerias ancestrais o sopro de vida que guardastes da superfície findará...

    Quando finalmente nos encontramos no interior do abismo escuro não carregamos mais que um cadáver. No mesmo instante em que  se dissipa o sublime deleite do ato de amor sobrevém o desespero. Ainda com vossos corpos entre nossos braços choramos amargamente. Maldita seja, mortal adaga que nos fere o coração! As torturas desse momento superam mesmo o fim da infância. Gritamos e urramos até onde nossas forças permitem. Quando terminamos, não somos nada mais que uma criatura exausta e faminta... só nos resta nesse momento uma opção: atender às imperiosas exigências de nossos instintos.

    É aqui que as mais horríveis lendas sobre nós se confirmam. Vossos corpos transformam-se em um mero pedaço de carne – o único alimento que pode nos saciar depois dos prantos e prazeres intensos. Servimo-nos dele com a voracidade das feras carniceiras. Engolimos músculos, gordura e todos os órgãos e fluídos que não forem para nós um veneno. Algumas vezes chegamos até a roer os ossos, em especial quando o tutano escondido em seu interior possa nutrir uma possível cria que carreguemos no ventre. Por favor, não nos recrimine, pois aqui nada fica do sentimento que alguns instantes atrás incendiava nossas almas. Enquanto devoramos o que resta de vós somos apenas animais selvagens garantindo a própria sobrevivência. Depois que terminamos caímos em sono profundo para depois acordarmos no mesmo cenário desolador que já conhecemos.

    É engraçado como o teu passado não importa mais. Depois de tudo que ouviu, do que agora sabe... Vejo os teus tesouros, o que está prestes a perder por mim. Tens jóias e um belo palácio... Vejo tua esposa, aflita pelo teu regresso. Teu pequeno bebê, nem dois anos completos – ainda balbucia os primeiros verbos.  Ainda podes ouvi-lo chamar-te pai... Tens uma oportunidade sem igual, fuja meu querido! Mate-me com a faca que guarda em teu cinto! Aproveite! Acerte-me no peito e liberte-se, é o bastante para quebrar o feitiço! Assim também abrevias minha agonia... o calvário deste mundo!

    Não, amado não hesite.  Dói-me a alma saber que mais uma vez privarei um pobre condenado do brilho da vida. Espere! Não faça isso!...

    Jogaste fora a única arma que dispunha. A chance de nos livrarmos desta maldição. Que vã esperança me acometeu. É impossível livrarem-se da cegueira depois que vossos olhos já estão cerrados. Não há outro destino para nós...

    Pois me acompanhe, meu amado, para o mergulho fatal. Aprecio a forma como ouviste atento a minha história e teu interesse em conhecer nossa sina. Tu quiseste conhecer-me, verdadeiramente, conhecer minha alma, e por isso serei infinitamente grata. Percebo agora que não posso pagar-lhe de forma diferente a que pago todos os outros. Irás fenecer nessas frias e tranquilas águas. Prometo-lhe, contudo, que farei tua viagem a mais bela e extasiante possível. Conhecerás algumas maravilhas das profundezas antes do momento final. Poderás ainda deleitar-se dos intensos prazeres de meu amor e, então, se despedirá do mundo com um sorriso no rosto. Que os céus possam trazer-me uma pequenina amaldiçoada dessa união. Falarei para ela de seu belo e amoroso pai... Mas não pense mais sobre isso. Está na hora! Vamos!

Escrito por Francisco Marques

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